Sobre este blog

Este blog publica exclusivamente conteúdo original da minha autoria (ver à direita) e serve o único propósito de garantir a minha imortalidade:

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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Capítulo Final: A Última Pergunta

Foi então que encontrou, abandonado no meio da desarrumação, perdido no meio do caos indecifrável do seu sótão poeirento, o velho e amarelecido livro do tempo.

Pegou-lhe com ternura e com pesar e desfolhou as páginas frágeis preenchidas de memórias soltas, desorganizadas, incompletas, misturadas com sonhos, factos imaginados e realidades inacreditáveis.

O livro encheu-o de conforto, mas de melancolia também, porque estava preenchido até à última página e ele sabia o que é que isso significava.

Guardou-o junto de si, ciente do longo caminho percorrido, recheado de bons e maus momentos, peripécias incríveis, aventuras improváveis e personagens inesquecíveis.

Guardou-o e soube que nunca mais o deixaria esquecido num canto, que o carregaria sempre e para todo o lado.

Depois levantou-se e olhou para a cortina que se deparava à sua frente, fechada, ondulando ao sabor de uma brisa morna e invisível que o desafiava silenciosamente.

E soube ali mesmo que a última pergunta é sempre a mesma, para toda a gente, em todos os lugares e em todos os momentos da vida. A última pergunta é na verdade a primeira pergunta, é todas as perguntas, é a única pergunta que existe.

E por isso perguntou:

"O que estará para lá daquela cortina?"

Avançou com passos decididos, atravessou-a e desapareceu.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A arte de estar sempre certo

Esta terá particular gosto e é especialmente dedicada para aqueles de entre os meus amigos que têm uma obsessão pela formalização de tudo quanto existe (leia-se, nas entrelinhas, MARCO em letras garrafais, mas também Hugo - um mais fundamentalista que o outro, mas ambos teóricos irremediáveis).

No entanto, recomendo-a vivamente a todos os que sejam como eu.

Se são como eu, já passaram por múltiplas vezes por ocasiões sociais em que se desenrola algum tipo de debate, mais ou menos informal, em que pensaram, com um enorme suspiro, "esta conversa não está a levar a lado nenhum mas infelizmente não há absolutamente nada que eu possa fazer quanto a isso", tipicamente por terem interlocutores de um destes dois tipos (ou pior ainda, dos dois tipos ao mesmo tempo!):

1 - gajo(a) que não pára de dispersar para fora do assunto em debate sem sequer ter a noção de que o está a fazer e que pensa estar a avançar nalguma direcção apesar de se limitar a fazer apenas observações superficiais sobre cada questão até isso o fazer lembrar de uma outra questão completamente diferente mas que ele considera estar intrinsecamente correlacionada com a anterior.

2 - gajo(a) que é pura e simplesmente incapaz de fazer qualquer tipo de concessão "for the sake of argument", que não consegue considerar qualquer possibilidade que não aquela que defende, porque acha que só o facto de considerá-la seria admitir que o seu ponto de vista está errado(a).

Se são como eu, este tipo de comunicação é uma experiência extremamente frustrante, porque não só não conseguem retirar nada dela como não conseguem que o vosso interlocutor perceba como está a ser completamente desorganizado e irracional na sua abordagem - e tipicamente, quando lhe disserem isto na cara, ele (ela, especialmente) vai achar que vocês são uns nerds insuportáveis que não são capazes de simplesmente "conversar".

Por mais irritante que isto possa ser, vocês são, no entanto, pessoas que acreditam que o debate é, à priori, uma experiência com imenso potencial para ser enriquecedora, uma troca de perspectivas em busca de uma verdade maior, mais completa, mais universal - ao contrário dos vossos interlocutores, que acham que debate consiste apenas em defender os seus próprios pontos de vista originais a todo e qualquer custo - de facto, serão tão ferrenhos que na eventualidade de lhes ser demonstrado de forma completamente inequívoca que estão errados, usarão a mais brilhante forma de argumentação que existe: dizer que o outro é, em termos coloquiais, um parvalhão.

Se isto vos parece familiar, também provavelmente saberão que tem um nome: argumento ad hominem - a mais corriqueira das falácias de argumentação que consiste em atacar directamente o interlocutor em vez de atacar o seu argumento.

Aquilo que alguns de vós talvez não saibam é que estas questões dos debates são o tema de estudo de uma disciplina da filosofia que se chama dialéctica.

E que em 1831, o filósofo alemão Artur Schopenhauer escreveu um interessantíssimo tratado sobre o assunto - incisivo, conciso e "to the point" - intitulado "Die Kunst, Recht zu behalten".

Não faço a mínima ideia do que é isso significa porque a única palavra alemã que conheço é shiza (e nem sei se é assim que se escreve), mas o título foi traduzido como "A arte da controvérsia" e também, de forma mais mordaz, como "A arte de estar sempre certo".

Fui simpático o suficiente para vos encontrar uma versão online do livro, está aqui. Agradeçam-me depois (vão-me agradecer se o lerem, é no mínimo BRILHANTE - aliás, se já vos convenci a lê-lo, vão mas é lê-lo, não percam mais tempo a ler isto, o que se segue é só um esforço da minha parte para vos interessar na leitura).

Este texto é uma abordagem extremamente formal ao conceito de debate e começa logo nas primeiras páginas por desmistificar por completo aquilo que ele é: e quanto a isso, meus amigos (aqueles de vós que são como eu) lamento, mas "eles" é que estão certo e nós, completamente errados.

Confundimos dois conceitos que são completamente distintos na sua raiz, como brilhantemente apontado logo nas primeiras páginas do livro.

Pois o debate não é, de todo, pela sua mais intrínseca natureza, uma forma minimamente eficiente (ou sequer eficaz) de chegar à verdade - não está simplesmente construído para isso.

Retirar tautologias é o negócio da lógica, não da dialéctica. Os filósofos gregos achavam que as duas coisas eram uma e a mesma (v. página 5) - e vejam bem onde isso os levou: a uma data de pseudo-verdades, todas perfeitamente plausíveis, todas indemonstráveis e como tal, em última análise, profundamente irrelevantes.

O negócio da dialéctica não é sobre atingir a verdade, mas sim sobre mostrar que o outro está errado (provando assim que estamos certos).

Isto pode fazer com que percam por completo todo o interesse nesta matéria, mas na verdade há algo de verdadeiramente fascinante nela que tem a ver com a natureza absolutamente ASSUSTADORA e perversa de algumas formas de argumentação falaciosas que existem (e que se usam constantemente!).

O mais interessante é que muitas destas falácias nem sequer são usadas de propósito, com o objectivo de manipular (embora sejam usadas com esse objectivo pelos conhecedores da dialéctica, como os políticos). São muitas das vezes erros lógicos dos mais simples que existem mas que, camuflados pelo palavreado, passam completamente despercebidos, mesmo às mentes mais lógicas e racionais.

Tenho uma falácia que é a minha favorita por dois motivos:

1 - é das mais recorrentes em todos os tipos de debate;
2 - é extremamente óbvia, mas isso não impede 1.

Na verdade, cometi essa falácia propositadamente e da forma mais descarada que consegui há poucos parágrafos numa asserção que fiz, e no entanto é provável que poucos de vós tenham dado por ela. Foi na seguinte frase:

"O negócio da dialéctica não é sobre atingir a verdade, mas sim sobre mostrar que o outro está errado (provando assim que estamos certos)."

A pequena frase entre parênteses, que pretensamente decorre directamente da ideia anterior, é uma absoluta enormidade. Quando demonstro que o meu oponente está errado, não fiz nada para demonstrar que eu estou certo.

E mesmo ao provar que uma demonstração dada pelo meu oponente está errada, isso nem sequer prova que a proposição que ele quis demonstrar esteja errada (poderão haver outras demonstrações certas que a provem certa).

No entanto, sempre que um político consegue provar que o seu adversário está errado, ele rejubila. E rejubila não por ter provado que está certo, mas por saber que todo o zé povinho vai pensar que sim!

Este exemplo deve servir para vos fazer ver o quão subtil, traiçoeira e, mais uma vez perdoem-me a coloquialidade, filha da p*t* a dialéctica consegue ser.

É um terreno cheio de armadilhas e precipícios muito bem escondidos, onde é facílimo cair, mesmo quando se anda com a maior atenção a ver onde se põe os pés.

Outras duas falácias que considero dignas de nota, por serem tão óbvias mas estarem impregnadas no discurso de tanta gente, mais do que isso porque me irritam profundamente e ouço-as constantemente, são:

- um contra-exemplo refuta uma asserção. Inexplicavelmente muitas pessoas conseguem usar uma "variação" desta regra no mínimo abismal: "provam" uma asserção baseando-se num único exemplo: "Achas que a criminalidade não está a aumentar??? Então ainda no outro dia me assaltaram o carro mesmo à porta de casa!"

Já não chega o efeito dizimante do erro de indução (induzir a partir de uma amostra irrisória: "Não é verdade que esta geração ande perdida e sem objectivos! Nos «Ídolos» só vês miúdos cheios de determinação e ideais"*) como ainda elevam o seu caso extremo à condição de regra lógica (!!!).

*peço desculpa pelo exemplo tão rebuscado, mas é real e recente e não me apeteceu pensar num melhor.

- a famosíssima: tomar uma implicação lógica por uma equivalência (informalmente, "andar para trás com a implicação", jocosamente, "andar no sentido proibido da implicação"). Aproveito para a usar num exemplo que está na origem dos estereótipos e de muitos fenómenos de discriminação: "Todos os assaltantes aqui da zona são ucranianos. Não posso com ucranianos." (mesmo que todos os assaltantes sejam de facto ucranianos isso não significa que a maior parte dos ucranianos seja assaltante).

"A arte de estar sempre certo" faz uma abordagem a 38 das falácias mais bem emboscadas que existem.

É considerado um livro extremamente perigoso, porque munido desde conhecimento e sabendo como estas falácias são furtivas, tem-se tudo o que é preciso para se ser um monumental manipulador.

Desde já dou um disclaimer: lê-lo poderá provocar um enorme desalento. Pois a partir do momento em que o tiverem lido, sempre que ouvirem uma discussão (ou pior ainda, um debate político), perceberão que invariavelmente não haverá um pingo de lógica, racionalidade ou relevância naquilo que está a ser dito - apenas manipulação, intencional ou não.

Poderão sentir-se tentados depois disto, a achar que saber estas coisas é uma perda de tempo, a não ser que se queira manipular alguém. Mas tenham em mente que não ter noção delas, não estar atento a elas, pode significar estar constantemente a ser manipulado sem saber.

Se quiserem saltar directamente para a parte onde o livro começa a aquecer, sugiro que comecem na página 14.

Se forem como eu, como o Marco, como o Hugo, ficarão certamente deliciados.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O homem que só comia bananas

Uma homenagem que quis fazer mas que não saiu como eu queria. Tinha-a aqui guardada nos rascunhos do blog há imenso tempo e cheguei à conclusão que não fazia diferença nenhuma postá-la, apesar de tudo.


Num sítio muito distante daqui, onde o sol brilha mais e o tempo é indivisível, conheci um homem que amava uma bananeira.

A sua pele era escura e o seu sorriso branco e radiante porque ele tinha tudo o que alguma vez pudera desejar, que era um abrigo para passar a noite, água para matar a sede, e bananas.

Só de bananas pode viver o homem, descobri eu, mas só ao fim de um tempo, porque no princípio não acreditava, desconfiava, achava que ele me estava a querer intrujar com uma história para crianças.

Mas não, não estava.

Dia após dia após dia apenas as bananas eram o seu sustento e mais nada ele metia à boca para mastigar.

As suas tardes eram passadas a contemplar o mar, deitado à sombra da bananeira, o olhar perdido nos limites do horizonte, um ligeiríssimo sorriso a insinuar-se-lhe no canto dos lábios, aquele sorriso permanente e imperceptível daqueles que não sabem o que é estar feliz, apenas o que é ser feliz.

E quando o sol por fim mergulhava no mar, salpicando o céu de matizes, o homem abraçava-se à bananeira com muita força e ternura e fechava os olhos e com todo o carinho deste mundo murmurava-lhe numa voz muito meiga, muito baixinho, que ela era a coisa mais bela que ele alguma vez vira e que tudo o que pedia da vida era poder morrer abraçado a ela.

A árvore às vezes respondia-lhe de mansinho, com um agitar leve das suas grandes folhas, anuindo e reciprocando.

Então, quando o céu se enchia de estrelas, o homem levantava-se e acariciava-lhe a casca dura e macia e com um olhar transbordante de orgulho dizia-lhe: Como estás grande e forte!... Como cresceste e te tornaste imponente!

Começava a dar pequenos passos para trás, para abarcar o corpo enorme da bananeira e perdia-se numa contemplação embevecida.

Finalmente, acabava por virar costas e enfiava-se no seu abrigo de folhas onde dormia até à manhã seguinte.

Todos os dias, muito cedo, ainda o sol mal tinha começado a despontar lá na lonjura, podias ver o homem ajoelhado aos pés da bananeira, murmurando qualquer coisa incompreensível, os olhos cerrados e o rosto muito sério.

Depois levantava-se e trepava pela árvore, com muita ligeireza e toda a delicadeza, um cuidado extremo para não a magoar, e apanhava bananas, que comia, abençoando cada dentada.

No início tudo isto me perturbava muito, porque apesar de agir como aquilo a que qualquer pessoa como eu chamaria de um louco, o olhar deste homem era lúcido, sábio até.

E admitamos, se o único propósito que temos na vida é o de ser felizes, então ninguém neste mundo se poderia considerar mais bem-sucedido que aquele homem.

Que maior e mais importante sabedoria pode haver do que saber ser feliz?

Foi então que chegou um dia em que, não conseguindo conter mais esta curiosidade que já me roía as entranhas, dirigi-me ao homem com toda a humildade de que fui capaz, e perguntei-lhe , sem qualquer sarcasmo, cinismo ou escárnio, movido apenas pela mais pura necessidade de perceber, porque é que ele amava a bananeira daquela forma, porque é que ele só comia bananas e nada mais e como é que ele conseguia sentir-se tão feliz e completo assim.

Esperei que a resposta se coadunasse com o modo de vida do homem: imperscrutável, misteriosa e profundamente intrigante.

Mas não.

A resposta fez-me perceber que não só este homem não era louco, mas também que a lucidez e sabedoria que eu detectara no seu olhar não eram ilusórias. Falou e disse algo que em português seria parecido com isto:

No início eu sentia-me miserável, porque nasci com uma condição terrível, que é a condição de ser um assassino. Para poder viver precisava de comer, e para comer tinha de matar, pois não tinha forma de nutrir o meu corpo que não envolvesse tirar a vida a algum ser.

E como eu a invejava [à bananeira], vivendo, resplandecendo, crescendo cada vez mais alta, cada vez mais robusta, até se tornar mais imponente e majestosa do que qualquer outra coisa viva, e isto - comendo apenas a terra onde se sentava!

Então eu tentei comer terra também, mas fiquei fraco e doente e chorei, por estar condenado a sujar as minhas mãos com o sangue ou a seiva de vida inocente.

E amaldiçoei-me por ter nascido assim, incapaz de viver sem matar.

Ela, por sua vez, não só imaculada de pecado, ainda tinha a generosidade de me proteger do sol quente com a sua sombra e da chuva fustigante com a sua copa folhada.

Com os seus braços abertos para o céu, convidava gentilmente toda a vida a vir-se abraçar a ela, a viver nos seus ramos e por entre as suas raízes.

E esta gentileza teria mesmo com os que a magoassem, os pássaros que a escavassem e os homens que a decepassem, os vermes que lhe roessem as entranhas e a matassem. E mesmo na agonia da morte, nunca a ouvirias gemer, estrebuchar ou contorcer-se. Permaneceria num mudo silêncio e pereceria sem que ninguém disso se apercebesse, como se não quisesse incomodar ninguém com a sua dor.

Na sua sabedoria, inteligência e generosidade infinitas, de noite ela come ar mas de dia come luz e faz ar novo, garantindo que nunca ficará com falta dele. Não só o faz, como não se importa de partilhá-lo connosco, apesar de só sabermos destruir e de nem nos apercebermos de que sem ela não conseguiríamos viver.

Tudo isto ela faz silenciosamente, movida por um altruísmo inigualável, fazendo bem a todos e não fazendo mal a ninguém.

E tão sensata é que vive sem ter consciência de si, evitando assim todas as angústias de quem não sabe o que é mas sabe que é.

Eu, na minha condição miserável, desejei que, já que não faço bem a todos, como ela, pelo menos que não fizesse mal a ninguém.


Um dia, atónito, descobri que na sua imensa bondade, era mais uma vez ela que respondia à minha prece.

Criava, especialmente para mim, estes frutos compridos que amareleciam até cairem a meus pés, convidando-me a prová-los.

E tem vindo sempre a dedicar uma parte da sua energia a fazê-los continuamente, ainda que não lhe sirvam para nada. São feitos com o único propósito de serem comidos. E por isso eu como-os, sem remorso, e rejubilo, por não mais ter de ser um assassino.

E ela continua a fazê-los para que eu os coma sem que eu lhe dê nada em troca, até porque não há nada que eu lhe possa dar que ela verdadeiramente precise.

Ela não precisa de ninguém para viver. No entanto, tudo o que consegue dar aos outros, ela dá, não importa como a tratem.

É o ser mais belo que existe.


E por este motivo o homem amava aquela bananeira mais do que tudo e todas as manhãs lhe agradecia a sua tremenda generosidade antes de se alimentar.

Nunca na minha vida voltei a ver um amor tão verdadeiro como aquele.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Fora-da-Lei

Há uns meses fui expulso da minha casa em Lisboa por ter sido acusado de a assaltar. Este texto sintetiza o que retirei dessa experiência.

Ah esta sensação de infâmia.... Esta doce sensação de infâmia....

Como fiquei viciado nela!....

Os olhares assustados dos outros, dos rectos, mirando-me sob a protecção dos ombros da polícia, simultaneamente curiosos e receosos, então foi ele?, perguntam, em surdina, deixa-me vê-lo, sussurram, e és uma atracção bizarra e são os teus quinze minutos de fama.

Esta deliciosa experiência de me sentir uma ameaça, mesmo quando a única coisa que estou a fazer é apanhar seca de braços cruzados.... Esta exaltação de me sentir perigoso e temido...

Injuriado, mas apenas à distância e protegidos, porque lhes sinto um respeito que só tem um nome: é medo, eles têm medo. Não confiam em mim, vigiam-me cada gesto, estão nervosos com a minha presença espectral, a ideia de ficarem sozinhos comigo fá-los desfalecer.

Um criminoso, nesta casa de bem.

Como o pudemos deixar entrar aqui?

Como pude dormir no quarto ao lado do dele por meses a fio?

Quem diria, viver com um deliquente debaixo do mesmo tecto, mas não, não mais, nem mais uma noite volto a dormir assim!

E assim nos transfiguramos por completo aos olhos destas gentes, ontem inofensivos, hoje monstros diabólicos e sem escrúpulos.

Marginais.

Transfiguramo-nos sem nenhuma razão plausível, racional, sem nenhum facto que o justifique, apenas a mente delirante e histérica dos que foram lesados, que precisam de um alvo, um bode expiatório e sou atacado de acusações.

E grita-me ela que tem toda a legitimidade para desconfiar de mim.

Vez após vez.

E começa a usar cada hesitação no meu discurso, cada pormenor do meu dia de que eu não me lembro bem, cada inflexão na minha voz, para inflacionar a sua suspeita, ao ponto da sua convicção ser tal que eu já começava a achar que só podia mesmo ter sido eu!

Então e o teu colega que esteve aqui hoje de manhã??? Foi ele, tenho a certeza!

O colega em causa é aluno de mestrado em matemática, como tal um completo alienado da realidade. Para ele roubar não tem qualquer desafio pelo simples facto de daí não se poderem retirar tautologias.

Vais falar com o teu colega e eu quero os portáteis aqui, não quero saber de mais nada!

Chegam os polícias e ela acusa-me, um dos guardas leva-me para a cozinha, identifica-me e faz-me esperar uma hora, enquanto os outros dois interrogam a histérica, cuja voz já não posso ouvir a acusar-me, a injuriar-me, difamar-me e caluniar-me, até que a hora passa, aí vêm eles, ouvir a minha versão.

Ou não?

Chega o responsável, o rosto carregado, a enfiar uma luva de cabedal na mão.

Onde é que é o teu quarto, pergunta-me ríspido, e eu indico-o como bom cidadão.

Sentam-me lá, os dois olhando-me de cima, diz-me um, a voz espinhosa, Vou começar já por te dizer que não gosto da tua cara, tens cara de mentiroso, mas aqui já toda a gente te topou... por isso o melhor que tens a fazer é dizer-nos onde é que estão os portáteis porque se não isto vai ser bem pior!

E eu rio-me, meio embasbacado, o que é isto? de onde é que isto veio? Isto são polícias, veêm isto todos os dias, será possível que a outra histérica lhes tenha dado a volta só por me acusar esganiçadamente, sem qualquer prova?

Estás-te a rir, olha que eu não estou a achar piada nenhuma, isto não é uma brincadeira, diz-nos já onde é que estão os portáteis antes que a gente te parta a boca toda! E não vale a pena continuares a tentar encobrir o teu colega, ele já confessou tudo...

E eu fico parvo. Até a história do colega eles compraram. É então assim que funciona a justiça, o primeiro a contar a história é que diz a verdade, ah quem me mandou ser cavalheiro...

Eles nem sequer sabem quem o meu colega é. Nem ainda lhes tinha dado o contacto dele. Mas ele já confessou... Isto as tecnologias modernas são outra coisa.

Continuam a pressionar-me, a acusar-me, a forçar-me a confessar, não vale a penas estares com essas merdas, todos os dias mando para a choça gajos como tu, foste apanhado agora vê se não complicas ainda mais a tua situação.

Já me começo a exaltar mas depois acalmo-me e lembro-me, isto não faz sentido, não vou ceder a este jogo, vou mas é contar aquilo que eu sei.

Saí de casa de manhã, vi a mãe da outra a pôr coisas no frigorífico, cumprimentei-a, fui ao ginásio, voltei passado uma hora, a porta estava entreaberta mas não liguei, pensei que a outra tivesse vindo a casa e que a tivesse deixado assim só para ir buscar qualquer coisa.

Não liguei, não me importei, fui tomar banho, vesti-me, voltei a sair.

Passado umas horas a outra ligou-me, começou-me a contar uma história estranha e eu, na minha boa fé, lembrei-me de ter encontrado a porta aberta...

Imediatamente o tom dela se alterou, agressivo, perguntou por onde é que eu tinha andado naquele dia e eu que já tivera um dia preenchido e estava cansado não me lembrava bem.

Como é possível não te lembrares? Não sabes a que horas acordaste? Não sabes o que fizeste hoje? Olha lá e esteve algum colega teu cá em casa hoje?

Hmmm... não que me lembre não....

Tens a certeza?

Pá acho que não, mas a verdade é que o hoje e o ontem são uma mancha difusa na minha cabeça e eu não me lembrava que tinha visto a mãe dela, que por sua vez tinha visto o meu colega, que tinha só passado lá por casa 5 minutos antes de eu sair, que por sua vez tinha contado a ela que nos tinha visto.

As suas suspeições voam em catadupa, eu digo-lhe para se acalmar, que vou lá ter a casa e vamos tentar esclarecer a situação e ela insiste que tudo o que eu faço e digo e me lembro é muito suspeito e tenta fazer-me contradizer e eu fico nervoso e contradigo-me e ela reforça uma certeza insane e eu vejo-me preso num beco que não sei como fui lá parar....

O seu principal argumento para me incriminar era o facto de eu não ter ficado completamente histérico como ela com o que acontecera.

Acabo de contar isto à polícia e eles gritam-me

MENTIROSO!!!
E o outro vira-se para o primeiro, não, isto não há dúvida, ele está a mentir...

E eu grito-lhes que me metam num polígrafo e eles dizem-me que amanhã passam por aqui de novo e é bom que os portáteis estejam lá...

Isso vai ser um bocado difícil, duvido que quem os roubou tenha intenção de devolver...

Estás a mentir, pensas que nos enganas, merdas como tu já eu estou farto de lidar, vê se pensas bem no que tás a fazer que ainda vais foder a tua vida toda!

E eu rio-me de novo e pergunto qual é o objectivo de toda aquela violência.

Violência? achas que estamos a ser violentos? Alguém te tocou por acaso? Tu não nos queiras ver ser violentos....

Violência verbal também é violência....

E eles riem-se e dizem que me deviam era dar um enxerto ali mesmo.

Pronto, digo eu, não vou continuar neste jogo... A princípio não estava à espera disto, mas vejo que só estão a fazer o vosso trabalho... Estão a ver se eu quebro, se confesso, se me assustam, mas eu não tenho nada para confessar e não vou continuar a exaltar-me com as vossas provocações....

Tu andas é a ver muitos filmes, já foste avisado, amanhã quero os portáteis aqui!

Amanhã vou para o Algarve, digo eu, já tinha isso combinado....

Vais para o Algarve???? Tu já não vais a lado nenhum meu amigo, eu vou agora passar-te uma ordem de restrição e não podes sair de Lisboa até seres interrogado!!!! E virando-se para o outro, olha-me este... tá a ficar nervoso agora quer fugir... Coitado, estes dois já não vão a lado nenhum, nós já temos o número de série, tão tramados, não vale a pena...

Estou muito curioso por saber o que é isso do número de série... Um número que determina a culpa... Há muita coisa que não conheço neste mundo...

Finalmente deixam-me ir e junto-me à maralha exaltada que está no hall, que se cala com a minha chegada, os olhares acusadores, pesados, a outra inquilina chorosa, a irmã da senhoria começa a atacar-me, o cunhado de não sei quem da senhoria a dizer para a irmã da senhoria se calar, a senhoria a dizer-me que o cunhado de não sei quem é advogado, a outra inquilina chorando...

Eu digo que lamento a situação e a irmã da senhoria chama-me ladrão e mentiroso e neste oróburus sem saída fico sem saber o que fazer, ninguém quer esclarecer a situação, ninguém quer analisar os factos, ninguém quer saber o que acho, o que eu vi e o que eu sei, eles já sabem tudo o que precisam de saber e até já sabem o que vão fazer comigo.

Você hoje já não dorme nesta casa.

A outra inquilina tem medo de mim, do ladrão.

Depois devolvemos a renda e a caução, não se preocupe.

Mas hoje você já não dorme cá. E vamos mudar a fechadura.

E eu sinto-me cair numa espiral surreal, rebolar numa bola de neve sem qualquer sentido.

O pasmo é tanto que nem contesto, já não quero perceber, já não quero saber.

Estou aqui há quatro horas a ser espremido e picado quando sou tão vítima como qualquer um de vós, és, és uma grande vítima, foste tu que ficaste sem um portátil de 250 contos!, diz a irmã da senhoria, cala-te!, diz-lhe o advogado, agora sabe-se lá onde é que os escondeu!, cala-te!, gritam a senhoria e o advogado em coro, a outra inquilina chora.

Estou farto. Na altura do primeiro telefonema eu estava a preparar-me para ir jantar. Entretanto passaram-se 4 horas.

Tenho para onde ir, mas passa da meia-noite e fui posto na rua... Podia perfeitamente não ter sítio para ficar...

E digo: Então mas onde é que esperam que eu vá? Expulsam-me da minha casa assim?....

Sua casa? - Diz sarcástica a irmã da senhoria....

Olhe, porque é que não pede albergue ao seu colega que trouxe cá indevidamente hoje de manhã? - diz a senhoria com um sorriso vingativo nos lábios.

Ao trazer estranhos cá comprometeu a segurança da casa, somos forçados a agir assim.... - diz o advogado.

A outra inquilina chora.

Eu vou ensacar umas quantas coisas, entrego as chaves e vou-me embora.

Quero lá saber.

Vou para a minha casa velha, onde fico nos seguintes 4 ou 5 dias.

A casa das larvas, sim.

Um fora-da-lei no exílio.

O rosto vincado pela dureza da vida.

A alma negra de todo o mal que infligiu.

Um coração de pedra.

O olhar sem brilho dos bandidos.

Um foragido.

Perigoso e temido.

Implacável e sem escrúpulos.

Irredutível...

Ah merda....

Esqueci-me de trazer roupa interior....

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O princípio

Envolvido por uma escuridão morna, era como se vivesse permanentemente naquele estado de delicioso torpor que te invade quando estás quase a adormecer. Os sentidos estão abafados, a consciência limpa e vazia e o único pensamento que te ocupa a cabeça é o de conforto, de aconchegamento e de paz.

O silêncio é total.

A temperatura, perfeita.

O corpo está tão relaxado que nem o sentes.

E assim ele existia, flutuando no vazio, alheio a tudo, desprendido de tudo.

Feliz, sob qualquer definição razoável de felicidade.

Sentindo-se completo.

E neste estado ele permaneceu inalterado por um longo prazo.

Suspenso.

Até que passado um imensurável período de tempo houve uma altura em que sentiu um abalo indefinível, que não dava para perceber de onde vinha nem o que era exactamente.

Um abalo que não altera em nada o teu estado de torpor mas que te faz sentir um formigueiro nervoso dentro de ti, não sabes bem onde nem porquê.

Estás confuso mas nem te interessa perceber a causa, ficas simplesmente à espera que a ansiedade passe e que tudo volte ao normal. E quando lentamente isso começa a acontecer, um novo abalo surge, idêntico mas intensificado, e assusta-te sem no entanto te despertar.

Na tua mente só corre o desejo de que aquilo te deixe em paz, que te deixem voltar ao teu tépido entorpecimento. Desejas isto tão convictamente que simplesmente começas a ignorar estes abalos na esperança que eles se vão embora espontaneamente.

Mas eles não te largam e vão escalando em intensidade e é como se alguém te abanasse vigorosamente para que acordes e tu te recusasses a acordar.

De repente percebes que consegues sentir o teu corpo e a sensação é desconfortável.

Sentes-te enclausurado, abafado.

Tentas esticar-te mas parece que não há espaço.

Tu só queres é adormecer mas de repente é como se tivesse ficado demasiado quente, demasiado apertado.

Tentas esticar-te de novo, mexer-te, mas tens os movimentos presos, estás rodeado por uma qualquer matéria constritiva e aquilo começa a incomodar-te sobremaneira.

Revolvendo-te acabas por encontrar um buraco nessa matéria e espremes-te lá para dentro, na esperança de ficares com mais espaço para poderes voltar ao teu delicioso torpor, que estás desejoso por recuperar.

Espremes-te mais e mais pelo buraco e ainda ficas mais constrangido no seu interior. Tentas libertar-te a custo, enquanto vindos não sabes de onde surgem uns sons abafados, exaltados, nervosos, que te redobram a ansiedade.

Mas porque é que foram interromper assim o teu conforto?

De repente, num espasmo, o buraco parece alargar e és empurrado por ele adentro, em violentas convulsões que te atordoam, uma após a outra. Percorres o seu interior, impotente, empurrado pelas suas paredes, até que de repente és expelido com brutidão e vais parar a um sítio completamente diferente de tudo o que conhecias e o impacto é tão forte que ficas em choque.

Uma luz fortíssima ofusca por completo a escuridão perfeita que te rodeava, ao mesmo tempo que és agredido por sons altíssimos e acutilantes que reverberam por todo o espaço e és invadido por uma horrível sensação de frio. Sentes-te a ser balançado, como se estivesses num barco num dia de tempestade e vem-te um enjoo enorme que nunca tinhas experenciado. Ao mesmo tempo começas a sentir uma angústia profunda, como se de repente precisasses urgentemente de algo mas que não sabes o que é e sem ainda teres acordado começas a entrar em desespero com toda aquela situação.

Porquê?

Que mal fizeste para te fazerem sofrer desta maneira?

Porque é que não te deixaram no teu maravilhoso e confortável estado de completa harmonia?

Neste momento ouves um som agudo ao mesmo tempo que recebes um impacto fortíssimo no corpo. Inicialmente ficas meio extasiado, assustado, tentando perceber que nova sensação é aquela e logo a seguir começas a sentir um doloroso ardor na zona onde recebeste o impacto.

Um ardor horrível.

E sentes-te tão injustiçado.

Porque é que continuam?

Como se já não estivesses a sofrer o suficiente.

E então, completamente desconsolado e ainda invadido por aquela nervosa angústia, sentes uma compulsão incontrolável para abrir a boca, como se isso te pudesse acalmar o desespero.

E berras.

O som quase que te rebenta com os ouvidos.

E para cúmulo dos cúmulos, nada disto te alivia, pois ao abrires a boca uma qualquer coisa entrou lá para dentro e enfiou-se dentro do teu corpo fazendo-o inchar de forma extremamente dolorosa.

Agora também te sentes a arder horrivelmente por dentro.

Em completa autocomiseração, totalmente magoado com o que te estão a fazer, a única coisa que fazes é berrar mais e mais e mais.

E lentamente isso alivia-te a angústia que tinhas começado a sentir.

Continuas a berrar enquanto és envolvido por uma qualquer coisa que te cura a sensação de frio. Voltas a sentir-te mais aconchegado.

As coisas estão a melhorar, mas ficaste tão magoado com todo o mal que te fizeram que não consegues parar de berrar.

Os sons tornam-se de novo mais abafados.

És pousado numa superfície macia, larga e quente, que instantaneamente te transmite uma sensação de calma, de consolo.

Sentes que és de novo agarrado, mas desta feita de uma forma diferente. Este agarrar é profundamente delicado e faz-te sentir protegido. É um agarrar carinhoso que te restitui o aconchego.

Os sons tornaram-se menos intensos e agora ouves uma voz dócil, meiga, maravilhosa, deliciada.

Sentes-te tão cansado, tão magoado por te terem feito passar por isto…

Dói-te tudo.

Esfregas a cara nessa superfície imensa e morna em que estás pousado e sentes uma protuberância rugosa, dura, por onde passas a boca.

Alguma coisa entra para dentro de ti, mas desta feita não te aleija.

É doce e agradável.

Queres mais daquilo. Procuras de novo a fonte daquela sensação, encontra-la e sem saber como, sabes perfeitamente como é que hás-de retirar mais desta coisa que te invade o corpo e te consola.

E à medida que te enches dela começas a sentir-te melhor.

Mais calmo.

E depois do choque passar apercebes-te que estás completamente esgotado.

O torpor regressa.

Finalmente regressa a paz.

Esperas nunca mais voltar a sofrer desta maneira.

E adormeces.