Sobre este blog

Este blog publica exclusivamente conteúdo original da minha autoria (ver à direita) e serve o único propósito de garantir a minha imortalidade:

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- In Is Google God?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Piropo

Às vezes a minha vida tem um quê de kafkiano.

Há uns tempos ia a descer a Duque de Loulé com o Hugo, em direcção a casa. Eram umas 11 da noite e avisto ao fundo do quarteirão um dos mendigos aqui da zona.

No meu quarteirão há muitos mendigos.

Há um que dorme à entrada do meu prédio todas as noites e resmunga sempre que chegamos tarde a casa por fazermos barulho ao abrir a porta da rua.

Há um que veste um casaco cor de vinho e consegue ficar horas de pé a fitar fixamente o vazio. Uma vez saí de casa às 9 da manhã e encontrei-o no meio do passeio a olhar para o outro lado da estrada. Voltei a casa eram 5 da tarde e ele estava na mesma exacta posição, no mesmo exacto sítio. Estou convencido que não pestanejou uma única vez nesse espaço de tempo. Gostava de saber o que lhe ia na cabeça.

Há um, e foi este em particular que vi nessa noite de que vos falo, que desperta em mim um enorme fascínio. Tem uma longa barba negra, espessa e impenetrável, um ninho de cabelos negros enriçados e está sempre completamente bêbado, com os olhos esgazeados, vermelhos de sangue. Costuma vaguear lentamente pela rua com um ar meio delirante e de vez em quando prega um berro altíssimo numa voz cavernosa que assusta toda a gente em volta. Nesse berro ele diz sempre a mesma frase, uma frase que me apoquenta, que me surge à noite quando não consigo dormir, uma frase críptica que oculta uma verdade profunda que não consigo deslindar por completo:

"ISTO É TUDO CARNE PA CANHÃO!!!"

Este homem é um filósofo.

Possui uma outra frase que costuma gritar aos outros mendigos. Grita tão alto que às vezes ouço-o em minha casa, no quarto andar:

"VAI-ME FAZER ESSA BARBA!!!!"

À primeira vista esta frase pode parecer mais mundana que a anterior, mas estou convencido que ela esconde uma profunda crítica social e que ao gritá-la este homem pretende alertar-nos para a mesquinhez da condição humana - quão frequente é condenarmos nos outros coisas que nós próprios temos ou fazemos?

Este homem é um génio, uma cabeça à frente no seu tempo.

Este homem é muito provavelmente a encarnação de Deus, que veio ao mundo na forma de um mendigo bêbado para nos pôr à prova. Pois ele grita alto e bom som verdades maiores que a vida, mas como por fora parece apenas um bêbado maluquinho e malcheiroso as pessoas não lhe ligam.

Eram então 11 da noite nesse dia e estava ao fim do quarteirão o mendigo filósofo, com o seu olhar estrábico. Caminhamos na sua direcção e no sentido oposto vemos uma mulher que era um autêntico avião, vestida com roupas muito justas e um decote voluptuoso. Ficámos os três a olhar para ela - eu, o Hugo e o mendigo.

Quando estávamos próximo de nos intersectar todos uns com os outros, o mendigo enche os pulmões e grita o piropo mais invulgar que já ouvi:

"OVOS COM ANANÁS É BOM!!!"

A rapariga deu um pulo, quase se desiquilibrando nos seus saltos altos.

...

"É bom é."

Depois deste episódio insólito continuamos a descer a rua. Ao fim de 20 metros viro-me para o Hugo: "Mas ovos como? Fritos? Cozidos? Mexidos?"

O Hugo reflecte durante uns instantes e vira costas, voltando a subir a rua, para ir ter com o mendigo. Chega ao pé dele e pergunta-lhe, "olhe desculpe, mas isso é ovos fritos, mexidos, ou como?"

E o mendigo responde-lhe: "Ou fritos ou mexidos."

Impressiona-me o facto de todas as frases produzidas por aquela boca serem tão intrigantes. Pois ele respondeu convictamente "ou fritos ou mexidos". Sendo que há tantas maneiras de fazer ovos (escalfados, cozidos, recheados, panados, etc) qual é a probabilidade de as duas únicas maneiras de comer ovos com ananás correspondam precisamente àquelas que o Hugo sugeriu na sua pergunta? Por outro lado, será que ele queria apenas dizer que não podiam ser fritos e mexidos ao mesmo tempo, tentando desta forma chamar a atenção para o facto de que não podemos ter tudo e que a vida é feita de opções e sacrifícios?

Perco muito tempo a matutar neste assunto.

Os mendigos do meu bairro costumam reunir-se a ver televisão na montra da loja da Sony, mesmo ao lado do meu prédio. Ficam ali horas e horas a ver a bola, as novelas, os reclames, o que quer que esteja a dar.

Recentemente fizeram uma vaquinha com o dinheiro das esmolas e foram aos chineses comprar um comando universal, para poderem mudar de canal.

Às vezes a vida tem um quê de kafkiano.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Autopromoção

Hoje dei por mim sem qualquer sentido de individualidade. Deve ser consequência de viver numa grande cidade… Na tentativa de a recuperar vou fazer um pequeno exercício de autopromoção.

Coisas não triviais que eu sei fazer:

- Dar um nó de correr usando apenas uma das mãos, para me poder safar se alguma vez ficar pendurado numa rocha por uma mão sem hipótese de me agarrar a mais lado nenhum.

- Deitar tempo fora.

- Estalar o mesmo dedo um número arbitrário de vezes, sem interrupções.

- Comer um super-menu no Mcdonalds, comer mais dois hambúrgueres porque fiquei com fome, chegar a casa e ver que encomendaram pizza, ficar com inveja e encomendar duas pizzas médias e comê-las inteiras.

- Comer 2 menus e um total de 6 hamburgueres no Burger King. No caso do Mac o record foi de 8.

- Comer um menu para 6 pessoas da telepizza acompanhado por um amigo.

- Deitar-me estupidamente tarde.

- Chular comida a uma pessoa até que a pessoa ache que compense dar-me só para não ter de me ouvir mais.

- Browsing no Mozzila e no windows. Sou muitíssimo mais competente nesta tarefa que a maioria da população.

- Deixar toda a gente fascinada com o tamanho do meu pé.

- Ter um quarto acolhedor independentemente das suas características originais.

- Rebolar ininterruptamente na cama enquanto durmo.

- Engonhar.

- Ser extremamente mal encarado quando não estou com paciência para aturar as pessoas.

- Escrever com a mão esquerda.

- Passar o challenge “least time” da câmara 18 do Portal em um 1:05 segundos.

- Acreditar no que me dizem mesmo quando é estupidamente óbvio que é mentira.

- Manter uma relação durante 4 anos and counting a 300 quilómetros de distância.

- Imitar um alemão.

- Ganhar um edge.

- Fazer os outros trabalhar para mim.

- Fornecer trivia em quantidades industriais.

- Comer sopa azeda só porque tive trabalho a fazê-la e não quero estar a deitá-la fora.

Já me sinto mais personalizado.

Este post merece sem dúvida o seu marcador.

V for Vendetta

O Hugo, para se vingar do meu post anterior, trancou-se no meu quarto e mudou-me a pass do youtube, para que eu não conseguisse fazer o login.

São 3 da manhã. Através de um processo moroso consegui recuperar a minha conta do youtube e mudei de novo a sua pass. Fiz o mesmo com todas as minhas contas online de email, messenger, etc, o que foi trabalhoso, mas não podia correr riscos.

Fiz também uma password sem a qual não se consegue entrar no meu windows e tentei fazer uma para a protecção de écran, que activaria ao fim de um minuto de inactividade, mas infelizmente não o consegui concretizar. É pena porque já tinha escolhido uma protecção de écran muito apropriada.

Dei-me a todo este trabalho porque antes disso consumei uma contra-vingança desproporcionada, da qual me sinto orgulhoso:

Consegui hackar praticamente em todas as contas online do Hugo, incluindo a dos seus dois emails, a do youtube, a do blogger, a do messenger, a do IMDB e não sei se não me estarei a esquecer de mais alguma.

Não consegui hackar o fenix, o mytmn, a caixa directa (não posso admitir que tenha tido esperanças) e o bet and win, este último porque não tive oportunidade uma vez que o site estava em baixo.

Em todas estas contas mudei a pass para outra que diz algo humilhante para o Hugo. A nova passe de momento permanece apenas na minha posse.

Penso que ele terá uma pequena surpresa nos seus próximos logons, e apenas conseguirá perceber o que se passa quando vier visitar este blog...

Hugo, se me estás a ler neste momento gostaria de te dizer isto. Como já deves ter reparado, o último post que foi publicado no teu blog (http://por-motivos.blogspot.com) não foi escrito por ti. Pois bem, o texto desse mesmo post foi reencaminhado para toda a tua lista de contactos do yahoo...

Desejo-te um óptimo Natal.

Bem já é tarde, vou dormir.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A Vida depois do Teorema de Godel

No outro dia pus-me a ler o artigo da Wikipedia sobre o Teorema da Incompletude de Godel, que de agora em diante designarei por TIG.

Não sei se o percebi bem, mas se percebi, é das coisas mais brutais que já me foram dadas a conhecer.

Como achei que o artigo não estava muito bem explicado tentarei eu próprio expor o seu conteúdo de uma forma que considero mais legível, na esperança que este teorema possa ter um impacto tão grande no leitor como teve em mim. Por outro lado, se o leitor for um entendido na matéria e verificar que estou a dizer alguma bacorada, peço-lhe que me corrija.

Uma das coisas que falta no artigo da wiki é contextualização, por isso é por aí que começo:

Uma Teoria matematizada, e é a este grupo que pertencem todas as teorias desenvolvidas de forma rigorosa, num sentido muito geral, é uma estrutura constituída por dois alicerces:

1. Um conjunto de axiomas, ou verdades auto-evidentes, isto é, um conjunto de proposições cuja validade é tão óbvia que se considera desnecessário prová-la.

2. Um sistema formal, ou seja, um conjunto de regras lógicas cuja validade também tem de ser assumida.

Isto significa em particular que uma Teoria é sempre limitada na medida que precisa sempre de pressupostos para ser construída e não existe nenhuma maneira recursiva de testar a validade destes pressupostos (daí o seu nome).

A partir dos axiomas usa-se o sistema formal (as regras) para retirar corolários, isto é, proposições que também são verdadeiras em consequência dos axiomas serem verdadeiros.

Estes corolários são os teoremas.

Uma teoria diz-se completa se todas as proposições verdadeiras podem ser derivadas dos axiomas utilizando o sistema formal, isto é, se não fica nenhuma verdade de fora, se não há verdades que não sejam consequência dos axiomas.

Uma teoria diz-se consistente se nunca for possível derivar dos seus axiomas duas proposições contraditórias, ou seja, se uma proposição e a sua negação não podem ser ambas verdadeiras.

Peço ao leitor que antes de prosseguir absorva bem o significado destas duas propriedades. Fui propositadamente redundante ao defini-las, para que o que vou dizer a seguir tenha mais impacto.

O TIG diz o seguinte:

Uma teoria não pode ser simultaneamente completa e consistente.

Pensem nisto.

O TIG deita por terra de uma vez e para sempre o objectivo final da física: derivar todas as leis do universo a partir de um conjunto de propriedades básicas, fundamentais.

...

Agora que a minha motivação com o meu curso estava no seu ponto mínimo, sai-me um teorema que faz o resto do trabalho.

This is worthless.


_________
Algumas das consequências científicas e filosóficas do TIG, bem como a ideia que está por trás da demonstração (de uma simplicidade infantil, como muitas das mais geniais ideias) podem ser encontradas aqui.

Obs. - Na minha exposição omiti alguns pormenores técnicos e cometi algumas imprecisões porque quis reduzi-la ao mínimo de maneira a que a ideia fosse plenamente legível.

sábado, 1 de dezembro de 2007

O Berço da Vida

Gostaria de vos falar da casa que habito.

Gostaria de começar por referir que sou uma pessoa asseada, que aprecia a limpeza dos espaços que me rodeiam, que retira um sentimento de qualidade de vida quando pode deixar cair uma coisa no soalho e simplesmente voltar a pegar nela e agir como se nada tivesse acontecido.

Deixar cair alguma coisa no soalho da casa em que habito é uma tragédia.

É como quando o herói apanha a mão da mulher que ama mesmo a tempo de a impedir de cair no precipício, perto do clímax do MAM (Mainstream Action Movie) e a imagem fica em câmara lenta e eventualmente a mão escorrega e ela cai, e eles olham-se nos olhos durante a queda, exprimindo nesse olhar todos os sentimentos inconfessados, acompanhados de uma música dramática com violinos e ele grita um "Não" que se prolonga por vinte segundos. É bonito e comovente de se ver num MAM, mas a realidade com que eu convivo é muito pior.

Se deixares cair uma coisa no meu soalho o mais sensato a fazer é incinerá-la.

Teorema: O chão da minha cozinha é um isomorfismo que transforma todo o objecto cadente de massa M num monte de merda amorfo com massa igual ou superior a 2M.

Demonstração: empírica.


Topologia do meu soalho:

Há uma camada heterogénea que cobre toda a extensão exposta ao ar formada por pó, cabelos, pintelhos, pedaços de picocas, flocos de cereais, migalhas de pão e outras partículas provenientes de comida em geral. Esta camada apresenta uma espessura média de aproximadamente 2 milímetros, apresentando em diversos pontos aglomerados de cotão mantidos coesos por uma mistura de cabelos e pintelhos. Há locais que têm maior concentração de pintelhos, como a casa-de-banho e outros em que é a comida que predomina (cozinha). Por cima desta camada encontram-se espalhadas aleatoriamente enormes quantidades de louça e roupa suja. A roupa suja tende a concentrar-se em grandes montanhas no Hall, impedindo a entrada no apartamento e também no chão da casa-de-banho, na marquise, e no quarto do Zé. Estes últimos três sítios são dos menos convenientes para se amontoar roupa porque são os sítios mais nojentos da casa.

A casa-de-banho porque o chão está sempre cheio de poças que nem sempre são de água.

A marquise porque é o sítio onde está o balde do lixo, sendo que o balde é apenas um ponto de referência, é mais rigoroso dizer que a marquise é, em si, o lixo; e onde está também a máquina de lavar roupa, que verte água.

O quarto do Zé pelas razões óbvias, isto é, por definição.

Para vos dar agora uma visão mais completa, há que referir ainda o estado da sanita, que infelizmente é indescritível utilizando apenas o vocabulário da língua portuguesa, mas do qual se pode dar uma boa aproximação definindo-o como o superlativo do repugnante; a banheira, que tem quase tantos pêlos e cabelos como o soalho e uma massa crítica deles no ralo, estando ainda pululada por rolos vazios e semicheios de papel higiénico que o Zé está sempre a deixar cair lá dentro, folhas de cadernos (não me peçam para explicar) e embalagens de shampô vazias que nunca chegam a ser deitadas fora; o lava-loiças que se devia chamar o "guarda-loiça-suja"; o frigorífico, do qual apresento a nossa definição muito própria:

frigorífico, s. m. - local onde se armazenam grandes quantidades de alimentos frescos e caixas vazias que em tempos contiveram alimentos.

De notar que esta definição omite o facto de que os alimentos não ficam armazenados para sempre, mas fá-lo não por ser óbvio que não ficam, é precisamente pelo motivo contrário. De facto, os únicos alimentos que chegam a ser alguma vez retirados do interior do frigorífico são os que estão à vista de quem abre a porta. Os restantes são deixados a apodrecer indefinidamente, até que se passa tanto tempo que se transformam num líquido negro e viscoso que conflui para a poça negra e viscosa que está na última prateleira. O espaço que antes ocupavam é preenchido por um novo conjunto de alimentos, que por não estarem à vista enfrentarão o mesmo amargo destino. This is never-ending.

Há ainda a mesa da cozinha que é onde comemos. Raramente vemos o tampo, que é de um branco tão bonito, porque normalmente a mesa está também ela coberta de loiça suja, comida em variados estados de putrefacção, caixas de pizza, migalhas, garrafas, cascas, e podia continuar esta enumeração Ad Infinitum e Ad Nauseum.

Não é de espantar, de facto, que sempre que vem cá um novo convidado ele franza o nariz e pergunte se nós não teremos trancado por engano o gato na despensa e que nos tenhamos esquecido de lá ir durante seis meses.

Essa é a altura em que eu admito, envergonhado, que não temos nenhum gato, nem vivo nem morto e faço um ar encavacado até o convidado mudar de assunto ou eventualmente ir-se embora, agoniado.

Falei-vos da minha casa e de como ela é suja, nauseabunda e repugnante.

Mas nem tudo é mau na minha casa.

De facto, no mais medonho dos sítios pode acontecer a mais bonita e maravilhosa das coisas.

A minha casa, amigos - e friso - é um Berço da Vida.

Nos sítios mais inesperados (ou não) prolifera vida nesta casa. Quantas vezes não vou buscar comida ao frigorífico e encontro lá no fundo uma caixa de tomates, já podres, de onde brotam fungos com grandes pêlos?

Quantas vezes não encontro esses mesmos fungos em embalagens abertas e semi-cheias de iogurte, na fruta, em variados legumes e em tantos outros alimentos?

Bolores no pão, dezenas de mosquinhas nas prateleiras, nas quais se encontram batatas podres com panóplias de colónias dos mais variados seres vivos.

E quando, após vários meses, decidimos tirar a montanha de roupa suja da marquise e descobrimos que as camadas superiores de roupa, ao abafarem as inferiores, criaram condições óptimas de temperatura e humidade para que, juntamente como o suor, o chulé e a água podre que verte da máquina de lavar, se criasse um morno ninho no qual se desenvolveu um gigantesco bolor?

Nestas alturas enchemo-nos de um orgulho paternal por toda a vida que nos rodeia, que para todos os efeitos fomos nós que criámos, mesmo sem o pretendermos.

E sentimo-nos unos com Deus.

De facto não, porque todos nós somos ateus.

De facto, o que acontece é que nos sentimos Deuses.

E perguntamo-nos, até onde pode isto ir? Até que ponto pode a vida proliferar num ambiente como este, que para todos os efeitos é uma fonte limitada de matéria orgânica?

E nesta linha de pensamentos o Hugo resolveu fazer uma experiência. Retirou do frigorífico uma taça que em tempos conteve uma papa de inertes flocos de aveia e que agora era um universo diversificado e luxuriante de fungos, bolores e sabe-se lá que mais. Colocou-a sobre a máquina de lavar e cobriu-a com uma marmita.

E ali deixou aquilo durante semanas.

Ocasionalmente levantava a marmita e observava o ecossistema fechado que ali tinha sido criado. Uma floresta exótica, infestada por dezenas de minúsculas mosquinhas que esvoaçavam incessantemente ali em volta.

A proliferação abrandou rapidamente. Ao cabo de 3 meses a taça era o retrato da morte. O ecossistema não era auto-sustentável e colapsou. Aquilo que em tempos fora um impressionante caldo de vida era agora uma massa preta, sólida, opaca, imperscrutável.

Deitámos a taça e a marmita fora. No tampo da máquina de lavar ainda se pode ver uma auréola negra formada por dezenas de minúsculas moscas mortas. Vamos deixá-la lá para sempre, como tributo a esta bonita colónia que já não está entre nós.

Recentemente aconteceu um novo milagre e desta feita de forma totalmente fortuita.

O Marco foi lá a casa fazer um dos seus maravilhosos cozinhados. Em vez de vos dar a receita deste prato específico, vou antes dar-vos algo mais valioso, que é o algoritmo utilizado pelo Marco em qualquer receita:

Cozinhado à la Robalo

- Encha uma grande panela de água até acima, independentemente da quantidade de comida que pretende cozinhar. Ponha-a ao lume, destapada.
- Ponha todos os ingredientes que quiser dentro da panela, desde que contenham apenas uma porção infinitesimal de gordura. Não descasque, corte ou pique o que quer que seja, para conservar o sabor naturalmente merdoso dos alimentos. Para evidenciar ainda mais este aspecto, abdique de quaisquer condimentos, em particular do sal.
- Espere um quantidade arbitrária de tempo, desde que maior do que 15 minutos (por algum motivo este minorante não é função nem da quantidade de comida nem da intensidade da chama).
-Use uma concha de sopa para se servir. Não escorra a água pois pode correr o risco de que o cozinhado não fique completamente empapado e insípido.

Nota: Se não consumir tudo na altura guarde o restante no frigorífico (SEM ESCORRER!!!) e coma no dia seguinte sem aquecer.


Voltando onde estávamos, os ingredientes que o Marco adicionou nesta situação concreta foram arroz, batata, cenoura, pescada, e couve, tudo inteiro e por descascar. Naturalmente não se comeu quase nada.

No dia seguinte o Marco foi embora e a panela ficou lá, cheia de comida até 3/4.

Eu recusei-me a lavar a panela. O Hugo recusou-se a lavar a panela.

A panela é do Zé. Como vimos anteriormente, por definição, o Zé não se importou com o facto de ninguém lavar a panela.

Tapámos a panela e pusemo-la ao lado do fogão para que o marco a lavasse na próxima visita.

A próxima visita só decorreu passado um mês, altura em que já era tarde demais.

Poucos dias antes da chegada do Marco destapamos pela primeira vez a panela. O cozido tinha-se transformado numa pasta castanho clara, muito espessa, com pequenas poças de um caldo igualmente castanho. Fora do caldo proliferavam vários fungos, nada de muito anormal, mas deixa ver melhor o que é isto?...

...


...


LARVAS!!!!!!!!!!!! OMmotherfuckingG!!!

Dezenas de larvas brancas a contorcerem-se numa pasta castanha amorfa!

E depois olhamos melhor e nas poças de caldo notamos uma borbulhagem...

MAIS LARVAS!!!! E MUITÍSSIMO MAIORES!!! E NÃO PÁRAM DE SE CONTORCER DE FORMA REPUGNANTE, DANDO A ILUSÃO QUE O CALDO BORBULHA!

Acreditem que dá voltas ao estômago.

Gostava que a minha descrição fosse mais vívida, mas espero que tenham ficado com a noção. Aquilo era uma coisa à filme de terror.

Do tipo, tão a ver quando um bicho morre e depois é comido por larvas?

That's what i'm talkin' about...

Fuck!


De alguma forma, aquela conjugação de alimentos formou uma autêntica fornalha de matéria orgânica. Mesmo depois de fecharmos a panela um cheiro pungente persistiu durante muitos minutos. Dias depois, quando voltámos a levantar a tampa, novo choque:

As larvas espalhavam-se ao longo das paredes da panela. Estavam a trepá-la, a querer sair. Já havia algumas na parte de dentro da tampa!

Holy fuck, esta panela tem de ir para o lixo e é já!

...

Por outro lado....

Esta merda é mesmo nojenta, temos mesmo de mostrá-la a toda a gente que conhecemos!!

Assim a panela ainda ficou por lá durante vários dias. Só levantávamos a tampa para mostrar o espectáculo aos visitantes que apareciam.

Ontem eu e o Zé decidimos por-nos a arrumar a cozinha. Normalmente não o fazemos porque como somos de física sabemos que a entropia de um sistema tende sempre a estabilizar a partir de uma certa ordem. Depois de atingida essa ordem a cozinha já não se caga mais.

Aquilo a que muitos chamam de "aterro", nós chamamos o "ponto de equilíbrio".

Estávamos a arrumar a cozinha e nisto eu levanto um saco do chão ao lado do frigorífico e encontro por baixo dele uma conjunção de pequenos bastonetes brancos. Zoom in. Zoom in.

LARVAS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Um carreiro de larvas, mesmo encostadas à parede, claramente vindas da panela (de que outro sítio podiam vir?) e que se esgueiravam para trás do frigorífico.

Em poucos dias, sem que nunca nos tivéssemos apercebido, estas larvas conseguiram de alguma forma fugir da panela e percorrer os 2 metros que as separavam do local onde as encontrei...

E depois, horror dos horrores, o carreiro continuava por ali fora, arredámos o frigorífico e deparámo-nos com uma visão horripilante... Mais de uma dúzia de larvas já ali tinham ido parar... Estavam duas molas da roupa no chão por baixo do frigorífico, fui apanhá-las e larguei-as de terror ao aperceber-me que estavam cheias de larvas por baixo.

Eu vivo com duas pessoas nojentas mas que são extremamente hipocondríacas. Para o Zé estava fora de questão simplesmente varrer as larvas dali para fora e pô-las no lixo e levar o lixo e a panela de uma vez para sempre daqui para fora.

O Zé precisava de álcool. Procurou por toda a casa, escrupulosamente. Não encontrou.

"Não há álcool em lado nenhum", disse ele abatido, quando voltou à cozinha depois de ter virado o apartamento todo ao contrário, esvaziando gavetas e armários.

Olhei para ele compadecido, fui à casa-de-banho e peguei na garrafa cheia de álcool que estava em cima do lavatório. Os olhos do Zé brilharam fulgurosamente quando a viu. Arrancou-ma das mãos e começou a esguichar aquilo pelo chão todo atrás do frigorífico.

Quando o vi a fazer aquilo confesso que tive um mau pressentimento. Estamos a falar ainda de um metro quadrado de chão. Por cima do qual estão os cortinados da janela da marquise...

Peguei rapidamente nos cortinados e afastei-os. O Zé ateou fogo a um pedaço de papel e deixou-o cair na poça de álcool.

No instante em que tocou no álcool a chama alastrou quase instantaneamente para toda a área que tinha sido irrigada, com um som característico da combustão. Chegou até mim uma onda de calor enquanto o meu cérebro tentava processar o facto de estar a ver a minha marquise a arder.

É tipo imaginares teres uma fogueira a arder no chão da sala... Sei lá, o cérebro faz curto-circuito, é que não estamos a falar de uma labaredazinha, mas de um metro quadrado de chão e paredes em chamas, um pequeno incêndio ali.

Eventualmente o fogo extinguiu-se e eu chamei a atenção para uma área que tinha larvas mas na qual o fogo não tinha estado. O Zé voltou a esguichar álcool para ali. Reparou que uma das molas ainda estava incandescente e, acto contínuo, trouxe o esguicho directamente até à mola.

O carreiro de álcool pegou fogo como um rastilho, e deflagrou um novo pequeno incêndio na parede.

Ok, aquela cena do rastilho, blá blá blá que o fogo podia ter subido pelo esguicho e entrado pela garrafa, blá blá blá, bem, tenho a dizer isto: aquilo foi E-S-T-I-L-O-S-O...

O fogo consumiu-se e restou apenas uma nuvem de fumo com cheiro a fogueira.

Varremos os detritos. Estava na hora de nos livrarmos da panela.

Quando olhámos com mais atenção para a panela verificámos que na tampa, nas paredes e na zona circundante se podiam ver de facto muitas pequenas larvas, que passavam muito facilmente despercebidas a um olho desatento.

Completamente creeped out tapámos a panela, colámos a tampa com fita cola, pusémo-la num saco e fomos pôr o saco no lixo- não no lixo do prédio, mas num contentor a uns duzentos metros de distância.

Chegados a casa estava na hora de nova purga - desta feita na zona circundante ao sítio onde a panela estava, que designadamente era ao lado do fogão, que por acaso até é um aparelho doméstico alimentado a propano ALTAMENTE INFLAMÁVEL.

A sorte é que o Zé tem um instinto piromaníaco tão apurado que nem sequer esperou que racionalizássemos o que estávamos a fazer, despejou álcool por ali em volta e vá de pegar fogo àquela merda.

Retirei atabalhoadamente os panos de cozinha que estavam pendurados ali perto e fiquei a apreciar o efémero incêndio que decorreu ao lado do meu fogão.

Ah beleza. Ah esterilidade.

Aprendemos assim que não devemos brincar aos Deuses... The Hard Way...

Aprendemos a nossa lição, suspirámos satisfeitos com o desfecho da história...

Missão cumprida.


...


Or is it?...

Apanho uma t-shirt no chão do hall para ver se é minha e por baixo dela vejo um grão de arroz. Não sei se é o meu cérebro a querer acreditar que é um grão de arroz, mas a verdade é que nem ligo, chego ao pé do Zé e decido pregar-lhe uma partida: "Zé, tinhas uma larva debaixo da t-shirt!!"

O Zé aterrorizado vai ao hall, eu digo-lhe que estava só no gozo e ele diz-me "Tavas no gozo?????? ENTÃO QUÉSTA MERDA?????".

Era um bago de arroz. A contorcer-se...



...


Devo referir que o sítio onde estava a t-shirt ficava a uns 6 metros da panela.

Por muito que o autor gostasse de o negar, todo o relato precedente é mesmo verdade, na íntegra.

Esta história pode ser corroborada em parte aqui, por uma testemunha que assistiu a metade dela.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

O Papalagui

Este é para mim um livro velho, daqueles que li na pré-adolescência e reli uns poucos anos depois. Por ocasião de me ter lembrado dele para o emprestar a um amigo reli-o hoje ao serão (é um livro curto) e é sem dúvida literatura recomendada.

Este livro é a compilação de um conjunto de textos escritos pelo chefe de uma tribo indígena das ilhas da polinésia, que os escreveu após uma extensa visita que fez à Europa, o mundo "civilizado".

Neles, ele tenta descrever ao seu povo o incompreensível modo de vida do "homem branco" - o Papalagui.

A sua visão da nossa sociedade é muito peculiar por ser uma visão totalmente "de fora". E é impressionante como nós parecemos quando somos vistos de fora...

Hoje estou com vontade de me por todo nu e ir viver para o meio do mato.

domingo, 25 de novembro de 2007

O Quinto Dia

Acabei anteontem de ler as 917 páginas d'"O Quinto Dia", de Frank Schatzing. Já não lia um romance há algum tempo e este era de grande envergadura, do tipo, se te cair em cima de um pé esmaga-te os dedos.

Sem dúvida que este livro deu-me que pensar e gostava de aproveitar o facto de ter este blog para comentá-lo, contudo há sempre aquele problema dos spoilers.

Como não quero spoilar farei apenas uma crítica geral ao texto.

O maior defeito deste livro é a inconsistência na escrita. O autor não tem um estilo próprio, mas antes uma grande variação de estilos, alguns dos quais francamente maus. Esta variação não parece ser propositada, mas mais uma consequência do autor se desleixar a certas alturas e simplesmente não se dar ao trabalho de investir numa boa narrativa. Isto é uma enorme pena porque este livro tem uma história muito boa por detrás, arrisco mesmo dizer uma das melhores histórias que já li. Ainda por cima, há alturas em que o autor revela que tem realmente potencial para escrever muito bem. Encontram-se no texto passagens muito vívidas que nos imergem profundamente na acção. Algumas arrepiam-nos, outras deixam-nos a reflectir, outras deixam-nas extasiados, outras criam-nos uma sensação de grande mistério, outras ainda fascinam-nos porque nos falam de coisas que nunca tínhamos pensado, ou que, por outro lado, nunca tínhamos pensado daquela maneira.

O problema é que de vez em quando somos pontuados por diálogos fraquíssimos, reflexões filosóficas de má qualidade que parecem retiradas do diário de um adolescente, e referências muito frequentes a filmes de hollywood para ajudar a concretizar certas descrições.

O livro, num estilo que se insinua cada vez mais nos romances modernos, está escrito como se fosse um filme; é extremamente visual na descrição e na própria narração - o narrador é quase como uma câmara que vai filmando acontecimentos, o que não é propriamente um defeito, mas mais um estilo que não aprecio muito.

A forma como a história vai sendo contada, por outro lado, está longe do perfeito. Não posso dizer que o autor tenha feito um mau trabalho, porque a história precisa de um grau elevado de contextualização, mas se no princípio foi criada uma atmosfera de mistério e suspense bastante interessante, mais para o fim parece haver de novo um desleixo na forma como as coisas são reveladas.

A história desenrola-se a uma escala mundial e relata eventos que têm repercurssões sérias do ponto de vista político, social, económico, militar entre outros. Se por um lado muitas destas facetas não são exploradas (o que é necessário para que nos foquemos mais na história central), as que são exploradas transmitem muitas vezes ideias ingénuas e inverosímeis da realidade e mais uma vez, muito dignas dos estereótipos de Hollywood. Isto foi das coisas que mais me desiludiu, principalmente porque não melhorou à medida que o livro se aproximava do final.

Não se focando em certos aspectos interessantes do cenário que criou para se concentrar na história principal, por outro lado o autor perde-se em caminhos algo fastidiosos como sejam a tentativa de conferir profundidade aos seus personagens. Encaremo-lo, este livro não é sobre pessoas nem sobre emoções; é sobre uma ideia espantosa que para poder resultar num romance precisa que hajam personagens. No entanto este livro tem muitas personagens - demasiadas. Como a acção se desenrola à escala global, tem personagens de todos os cantos do mundo e o autor aproveita para se espraiar nos pormenores pitorescos dos seus países e culturas, o que nem é muito mau, o problema é que ele insiste em dar um background histórico a grande parte delas, o que não contribui em nada para a história e na verdade não acrescenta nenhum valor ao livro.

A minha última crítica pode ser algo mesquinha, mas não deixa de reflectir a minha opinião. Um livro pode ter, como este, mil páginas, mas não há nada mais importante nele do que a maneira como começa e a maneira como acaba.

No que toca ao começo, a analogia de conhecer uma pessoa funciona perfeitamente: a primeira impressão tem um peso enorme. Por mais que nos consideremos pessoas não superficiais, não conseguimos deixar de julgar uma pessoa nova por aquilo que ela aparenta ser na primeira vez que a conhecemos, e é isso que vai definir por completo a maneira como vamos olhar para ela enquanto a vamos conhecendo. No caso do livro acontece o mesmo: preparo-me para ler um calhamaço do qual não sei nada. O princípio define o ambiente e condiciona quase por completo a predisposição com que me ponho a ler o livro.

Este livro tem um mau começo. É um daqueles começos banais, comerciais, estereotipados, com a agravante de ser demasiado grande e enfastiante.

A importância do final nem preciso de a enaltecer - a maneira como um livro ou filme acaba define praticamente no todo a opinião final com que ficamos dele. O meio pode ter sido uma porcaria, mas um final arrebatador compensa tudo, faz-nos rapidamente esquecer a mediocridade do que está para trás.

O final é a coisa que fica mais marcada na memória, por ser a última e daí a necessidade de acabar em grande.

O final deste livro também não é grande coisa. Diria mesmo que o epílogo é um anticlímax completamente desnecessário, com mais uma daquelas reflexões filosóficas meio adolescentes. Este livro deixou-me por várias vezes num estado de reflexão, quando interrompia a leitura, mas não foi que me aconteceu quando o acabei, o que lamento.

Acabadas as críticas talvez vos tenha deixado com a ideia de que o livro não presta, mas nada podia estar mais longe da verdade. Como referi anteriormente, este livro tem uma ideia central mesmo muito boa (e assustadoramente plausível) que é muito bem desenvolvida e a propósito da qual se retiram reflexões extremamente profundas. Tem descrições muito bem feitas e em particular descreve coisas a que estamos habituados a conceber mas de formas totalmente novas e fascinantes.

Bem, para aguçar mais a vossa curiosidade não posso deixar de revelar algum conteúdo, por isso a partir de agora deixo as coisas por vossa conta e risco.

Para vos ajudar a decidir quando for melhor parar de ler, vou dividir a minha exposição em secções com níveis crescentes de spoilers, começando a partir do próximo parágrafo. Chamo a atenção para o facto de existir um ponto sem retorno, isto é, para quem não estiver mesmo interessado em ler o livro, eu vou eventualmente contar aqui todo o enredo principal. Escusado será dizer que tem muito mais piada se se ler o livro, no entanto tentarei manter o suspense e dar algum impacto à história.

**SPOILERS - NÍVEL 1**

Os sintomas de algo de muito estranho começam a insinuar-se por todo o mundo.

Nas costas sulamericanas ocorrem desaparecimentos misteriosos de pescadores em dias de mar calmo e céu limpo.

Em Vancouver, no Canadá, as excursões para ver baleias não encontram uma única baleia, numa altura do ano em que SEMPRE se viram baleias, porque elas SEMPRE passaram ali no curso da sua migração.

Uma companhia petrolífera sonda o solo submarino com o objectivo de fazer uma plataforma de extracção nos mares da Noruega e encontra lá algo de perturbador. A vertente continental submarina está completamente infestada por biliões de espécimes de um verme novo, totalmente desconhecido da ciência, que possui poderosos maxilares e presas.

O mundo marinho está a sofrer visíveis perturbações que ao parecerem descorrelacionadas passam despercebidas à grande maioria da população, mas que rapidamente crescem em proporções chamando a atenção de vários cientistas e estudiosos por todo o mundo.

Aparentemente, o impacto do homem no meio ambiente está agora a fazer-se sentir nos mares. A extensa poluição dos oceanos, a pesca desenfreada, o aquecimento global, a brutal delapidação dos mares por intervenção humana interferiram no equilíbrio delicado de um ecossistema enorme e extremamente complexo. Estão a ocorrer alterações a grande escala no ventre submarino da Terra e elas não acabam aqui.

**SPOILERS - NÍVEL 2**

Continuo isto noutro dia... ou talvez não continue, logo vejo.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Os de Ontem

A constatação da irreversibilidade da vida não é propriamente um "breakthrough". Na verdade não tem nada de original. É uma ideia velha, um lugar-comum, algo que afecta toda a gente nalguma altura e o problema de ser tão universal é que acaba por ser vista com grande banalidade. Mas houve um dia em que esta constatação surgiu-me quase como uma epifania e a sensação que me transmitiu foi tão forte que quis cristalizá-la. Desse esforço nasceu este texto, não mais do que uma sombra daquilo que verdadeiramente quis exprimir.


Pesa as minhas palavras.

Se te parecem cliché tenta esquecer que o são, porque de facto o são, e tenta lê-las como se nunca tivesses pensado nelas, limpa-te de ideias pré-concebidas, para que possas voltar a assimilar o seu verdadeiro significado.

Não há nada neste mundo que pese mais que a passagem do tempo.

Os amigos e amores de hoje parecem ser a coisa mais importante que tens e alguma vez tiveste.

Tal como pareciam os de ontem.

Mas as voltas da vida levaram-te para longe deles.

Primeiro deixaste de passar o teu tempo com eles.

Depois deixaste de os contactar.

Deixaste de lhes falar.

Deixaste de os ver.

Deixaste de os lembrar.

E nada disto te incomoda, porque não te lembras.

E não magoa, porque é uma transição tão gradual, tão recíproca, que nem te apercebes.

E esqueces.

Aquilo que era tudo.

Aquilo que te preenchia.

Aquilo que amavas. E que te amava.

Esqueces.

Não te irá pesar enquanto não passar muito tempo.

Anos.

Passam anos.

Cresces.

Mudas.

Até que fortuitamente eles voltam a impregnar a tua vida transportados através de uma história vinda de longe, de uma fotografia esquecida, de um sonho, de uma memória antiga.

E aí o peso do tempo afunda-se em ti.

Olhas para o dia solarengo, para o chilreio dos pássaros, para o sorriso das crianças, para o céu limpo e azul e tudo o que vês é uma tristeza atónita, colossal, um assombro de decrepitude, uma saudade inconcretizável, o esmagamento por uma solidão maior que a vida.

Como pudeste esquecer-te, perguntas-te.

A nostalgia preenche-te de uma dormência constritiva, de uma vertigem de lucidez que é a angústia da existência.

A angústia de saberes que nada do que fazes faz sentido.

Nada do que tens.

Nada do que amas.

Nada do que julgas certo ou errado.

A tua vida não tem significado ou propósito.

As pessoas que eram as mais importantes não fazem agora parte da tua vida e tu nem te apercebeste de como isso aconteceu.

Agora, há outras que as substituem. Outras com quem podes contar. Outras com quem convives, ris e confidencias. Outras que amas e que te amam.

Contudo, a lembrança dos de ontem, que ainda te percorre, faz-te perceber que o que sentes por todas elas e o que elas sentem por ti é completamente artificial. Amigos e amor são algo que precisas para te sentir completo e feliz, no entanto, as pessoas em que concretizas a tua amizade e o teu amor, essas, são inextrincavelmente aleatórias. Tu usa-las como invólucro para esses sentimentos do mesmo modo que elas te usam a ti.

Aquilo de que precisas verdadeiramente não é delas, mas dos sentimentos que elas te despertam. E és viciado neles. Não consegues de todo viver sem eles.

Quando as pessoas onde os guardaste morrem, ou quando és separado delas pelas circunstâncias, pensas ter perdido tudo o que tinhas. Mas o tempo ensina-te que apenas perdeste recipientes, o conteúdo nunca te abandonou. Só precisas de novos recipientes para encher com o mesmo conteúdo.

Porque tu não amas aqueles que amas, o que amas é o amor que sentes.

És uma criatura ridícula, profundamente ignorante, que vai morrer inevitavelmente. Contudo o que é mais ridículo em ti é não seres capaz de viver sem outros como tu, outros a que tens de agradar para que te agradem a ti.

Toda a tua vida se regula em função deles.

É por eles que te esmeras.

É por eles que te aperfeiçoas.

É por eles que te esforças.

É pela sua aceitação. Pela sua aprovação.

Mas no fundo não é por eles. É por aquilo que precisas que eles te dêem.

Tudo porque não consegues libertar-te desses sentimentos que nem sabes explicar.

E hoje lembraste-te dos de ontem e com eles esqueceste-te dos de hoje, porque o amor que mais te sacia é o amor novo, que vem acompanhado de paixão. Amas os de hoje, mas não lhes sentes paixão, porque já não são novos.

Os de ontem, por seu lado, estavam esquecidos, e ressurgidos desta forma aparecem-te como novos.

A tristeza amorfiza e no seu lugar começa a surgir um inconformismo obstinado, uma necessidade de recuperar o para sempre perdido, de remendar o irreparável, de ignorar o irreversível.

Procuras loucamente pelo seu paradeiro entre amigos de amigos, amigos de conhecidos, conhecidos de amigos. Move-te um sentimento que te transcende, enches-te de um rejúbilo que é a perspectiva de reviveres todos aqueles momentos maravilhosos que entretanto renasceram na tua memória.

Momentos que, ironicamente, não valorizaste de todo quando os viveste, tal como não valorizas os que vives agora mas que hás-de saudar um dia da mesma exacta forma.

Por fim encontra-los.

Os de ontem.

Os que eram tudo para ti.

Os que esqueceste.

E em vez da felicidade que esperavas alcançar ao tê-los de novo contigo, o que encontras é uma ainda mais amarga desolação que é a definitiva evidência de que aquilo que tanto saudavas não eram eles, mas sim memórias de momentos para sempre enclausurados no contínuo fluir do tempo, momentos que nunca poderás recuperar. Momentos em que eles te deram a amizade e o amor dos quais precisas tanto como do ar que respiras.

Olha-los nos olhos sondando-lhes a alma, incrédulo. Sentes que algures lá dentro tem ainda de estar uma chama, um resquício daquilo que partilharam, que sabes que era especial.

Em desespero, tentas reavivar essa chama, porque não consegues ver o que mudou. Tu queres que tudo volte a ser como era e vês nos olhos deles que eles também querem, mas então se assim é, porque é que já não é a mesma coisa?

Olha-los e vês os sinais que o tempo lhes deixou. Estão diferentes. Podem ser jovens, mas estão mais velhos. Quando olhas com mais atenção começas a ver.

Eles mudaram.

Ao assimilar esta conclusão reparas que o seu olhar reflecte-se no teu, como num espelho.

E percebes tudo com um sorriso profundamente angustiado.

Tu mudaste.

A Última Hora


Este texto estava a apanhar pó numa qualquer subpasta d'"Os meus documentos". É datado de Agosto de 2004, tinha eu dezassete tenros anos, e é um ensaio sobre as ultimas reflexões de um condenado à morte. Em retrospectiva diria que está um pouco óbvio de mais, hoje optaria por uma abordagem mais subtil. Por outro lado acho que o estilo de escrita está interessante, notando-se uma clara influência das leituras de C. Palahniuck.

A vingança é o ódio que nasce nas vítimas do ódio. Como o amor, o ódio é cego, e da mesma maneira que pelo amor se morre, pelo ódio se mata.

O meu nome é uma incógnita. Para ti, não sou mais do que um rosto anónimo que vês passar na rua. Tenho uma história para contar que é a história da minha vida. Não esperei vir a contá-la tão cedo. Pensei que a iria contar na minha velhice, sentado numa cadeira de balouço, ao pé do crepitar acolhedor de uma lareira acesa, com um neto de três anos ao colo, enquanto mordiscaria a ponta gasta de um cachimbo de madeira, aproveitando aqueles deliciosos momentos de fim de tarde, crepúsculo do dia, crepúsculo da minha vida...

Infelizmente, não vou poder gozar esses momentos, porque a minha história já acabou.

Estou sentado no chão sujo de uma cela apertada. Há um cheiro pestilento a pairar no ar... A náusea é uma constante. Já me habituei. Nunca me habituei foi a este silêncio gritante. Dizem-me que estou aqui há seis anos. Eu não sei, não refuto nem corroboro, pois há muito que perdi a noção do tempo.

O guarda disse-me que hoje tinha chegado a minha vez. Finalmente.

Não sei há quantas horas me disse isso. Sei que vai acontecer às seis da tarde, mas isso não tem grande relevância para mim... Podem faltar cinco minutos. Podem faltar duas horas... Pelos menos sei que é hoje. No interior da minha cela, sem janelas, luminosidade débil, ambiente decadente, não sei se é tarde, não sei se é manhã, não sei se é noite. O tecto goteja em cadência... As infiltrações duram há tanto tempo que já se denotam pequenas estalactites de calcário e o chão está carcomido por uma espécie de bolor verde.

O meu nome é uma incógnita e hoje vou morrer.

Durante muito tempo temi a chegada deste dia. Tinha medo da treva, do negrume, do silêncio, da solidão. Da morte. Eu não queria morrer. Eu queria uma oportunidade... Ninguém ma deu. Agora já estou morto. O meu corpo sobrevive, a minha mente divaga, mas o meu espírito abandonou-me há muito.

Não consigo deixar de sentir um certo nervosismo. A minha garganta é cortiça, o meu estômago é ácido. Dentro de pouco, muito pouco, uma agulha vai-me penetrar a pele... Vou sentir um ardor corromper-me as veias, uma tontura, uma derradeira náusea e depois acabou-se. O oblívio. Perder-me-ei no esquecimento.

Será justo? Dantes interrogava-me sobre a justiça. Será que o mereci? Isso não me importa... Na realidade, é um alívio saber que este momento chegou. De qualquer forma, a pergunta nunca teve uma lógica inerente. Que interessa se mereci? O que é facto é que não vai resolver nada. A minha morte não vai acalmar as almas dos que trucidei. A minha morte não vai salvar ninguém. Não vai ajudar ninguém.

Às vezes pergunto-me se estou arrependido daquilo que fiz. Penso para mim próprio: se me fossem dadas as mesmas condições, voltaria a optar da mesma forma? Não sei. Haveria alguma forma melhor? Nenhuma alternativa me deixaria bem comigo próprio. Quando o fiz pensei que iria encontrar paz. Mas não. Só encontrei desolação.

Uma injecção de cianeto de hidrogénio e depois a morte.

O guarda disse que o padre viria dar-me a extrema unção. Aproveitei a ocasião para lhe dizer que se Deus existe é um merdas. Disse que o padre faria melhor em continuar os seus sagrados deveres de violação de criancinhas inocentes... Eu deixei de acreditar no Supremo Arquitecto há muito tempo. Se aquilo que está escrito tem uma ponta de verdade, então eu estou condenado ao inferno até ao fim dos meus dias. Nem que viesse o Santíssimo Papa perdoar-me todos os pecados eu me safaria.

Não tenho grandes informações sobre o que se passa no exterior, mas sei que as pessoas me odeiam. Para elas sou um assassino em série, um psicopata animalesco que devia ter ido parar à cadeira eléctrica.

Não vejo o céu há tanto tempo que não me consigo lembrar da sua cor.

Para o mundo eu sou a personificação do mal. Sou um doente intratável. Sou maléfico por natureza.

O meu aspecto não ajuda muito desde que fui espancado pelo grupo dominante desta jaula de gorilas. Deixaram-me a cara totalmente desfigurada. Levei cento e dezassete pontos e as hemorragias demoraram dias a estancar. Actualmente, se olhares para mim, não saberás distinguir qual dos inchaços da minha cara é o meu nariz.

Até os outros prisioneiros me odeiam. É por isso que estou na solitária há tanto tempo. Os guardas não se importaram muito com aquilo que os outros me faziam até terem de me isolar com medo que me matassem.

Os guardas não gostam que os prisioneiros morram nos seus domínios. Traz-lhes problemas.

Quando entrei na cela em que estou, nunca imaginei que iria passar tanto tempo aqui dentro. Não fui autorizado a assistir ao meu próprio julgamento, porque na audiência preliminar insultei o juiz. Não sei qual foi o problema deles. Ele era realmente um javali nojento... Bem, claro que não devia ter chamado a mãe dele à conversa, mas uma pessoa não controla todos os seus impulsos, não é?

Fui expulso por desrespeito ao tribunal.

O meu processo arrastou-se durante anos e anos. Os meus pais são ricos, ou pelo menos eram, antes disto tudo ter acontecido, e puderam pagar os melhores advogados na minha defesa.

A culpa não foi dos cães dos advogados. Eu condenei-me à morte. A sentença foi ditada há cerca de dois anos, e hoje chegou o grande dia.

Gostava de saber que dia é hoje, já que é provavelmente o dia mais importante da minha vida. Também gostava de saber ao certo qual é a minha idade, que calculo em cerca de vinte e quatro anos.

Quando me olho ao espelho não me reconheço. Transformei-me num destroço esfarrapado da pessoa que uma vez fui.

Não consigo deixar de pensar na minha mãe e na forma como a desiludi. Os meus fantasmas perseguem-me e trucidam-me, recordando-me a todo o momento o amargo destino que tracei para mim próprio.

Os guardas não se importam com nada. São abutres. Uma vez, no balneário, dois gorilas seguraram-me e o chefe do bando corrompeu todo o respeito que eu tinha por mim, num momento que pareceu uma eternidade, em que violou o meu corpo, a minha mente, destruiu a minha dignidade, reduziu-me a esterco consciente da sua existência, humilhou-me tão profundamente que não consegui enfrentar a minha própria imagem durante muito tempo.

Este mundo é podridão. Quando não o conheces, parece um lugar maravilhoso, mas quanto maior se vai tornando a tua consciência sobre os seus limites, maior se torna o teu nojo inerente a tudo o que existe. Ou talvez não. Talvez este mundo seja mesmo o lugar mágico e encantado com o qual sonhei em criança. Talvez tenham sido apenas as minhas acções e decisões que me deram esta percepção da realidade.

De qualquer forma, há muito que a minha percepção deixou de ter qualquer interesse. A minha mente foi tão dilacerada que tudo o que me circunda se tornou completamente surreal.

Tenho consciência disto porque acredito em lógica e num mundo lógico, coisa que o meu deixou de ser por completo.

Um injecção letal, com uma agulha esterilizada. Deram um último cigarro a um homem que ia ser enforcado. Ele respondeu: “Não obrigado. O tabaco faz mal à saúde”.

Dormência

Ou "Delírio". Ou "Demência". Ou "Psicotrópicos".

Dex olhou para baixo e a vertigem fê-lo vacilar. Um relâmpago iluminou o céu nocturno, ao longe, e o ribombar do trovão chegou pouco depois, abafado pelo estrépito contínuo da chuva torrencial. Olhou para baixo e viu o vazio a abrir-se diante dele, o nada a chamá-lo para a consolação do infinito. E lá ao fundo, muito em baixo, apenas um prado de luzes cintilantes, bruxuleando de forma surreal.

Abriu os braços e deu mais um passo em direcção à berma. Outro relâmpago estalou sem aviso, muito mais perto que o anterior e o estrondo fez com que desse um salto que quase o atirou para o oblívio. Mas recompôs-se e riu alto, loucamente, despropositadamente. Riu-se e gritou e desafiou a tempestade a lavá-lo daquela dormência que o assolava, que estava impregnada na sua vida e na de toda a gente. E quando o vento lhe respondeu com brutalidade, chicoteando-o sem piedade e vergando perigosamente a estrutura de metal onde ele estava apoiado, Dex quase vomitou as tripas, mas riu-se perdidamente, extasiado com a evidência de estar vivo.

Ergueu o olhar para abarcar a cidade que o rodeava a perder de vista, as formas cinzentas dos edifícios esbatendo-se contra o fundo negro da noite e as luzes, centenas, milhares de luzes, cintilando a seus pés e até ao horizonte distante.

Na sua indiferença e eterna frieza, a metrópole era lavada de uma sujidade inextinguível, purificada pelas vergastadas da chuva implacável e assim animada duma beleza intangível, odorífera, que o envolvia numa embriaguez eufórica, da qual não se queria libertar. Um terceiro relâmpago rasgou o céu e as fachadas iluminaram-se de cores de prata, os prédios escarpados projectando sombras negras nas ruas e nos becos escondidos. As gotas reluzentes da chuva pareceram parar no ar durante um instante dilatado em que o clarão iluminou tudo e Dex susteve a respiração, tentando congelar aquele momento na eternidade. Mas então o clarão desapareceu e os alicerces do mundo tremeram perante a formidável explosão sonora da trovoada. Dex não conseguiu suportar a ideia de deixar escapar a magia daquela tempestade e sentiu uma urgência enorme de se juntar a ela. Sem pensar, flectiu as pernas e atirou-se de cabeça para o abismo, gritando de alegria.

Do Outro Lado do Espelho

Bem-vindos ao meu pesadelo. O crepúsculo alonga as sombras até ao infinito, onde os meus sonhos vivem. O ar está tão pesado e tão denso que me sinto encurvar sob o seu peso inexpugnável. A bruma envolve tudo numa atmosfera inefável, etérea, irreal. As árvores morrem, desvanecem-se no negrume, a luz moribunda desfaz-se ao penetrar nas suas copas folhadas, parte-se em mil feixes, fragmenta-se inextrincavelmente como a imagem que vejo quando mergulho nos olhos desse que me encara do outro lado do espelho. Olhos, diz-se, são o espelho da alma. O meu espelho está irremediavelmente partido.

Se o pudesses ver, dirias que caiu ao chão, por acidente, talvez, e que se partiu em mil bocados, que se espalharam pelo chão, fragmentos cintilantes de um todo complexo e nunca completamente compreendido, agora perdido. Dir-se-ia que alguém o tentou salvar, então, recolhendo cada pedacinho, pois a verdade deve ser dita, não há um pedaço que lhe falte, e, com a paciência de quem só lhe resta a morte, se pôs a colá-los, um a um, tentando inverter os insondáveis caminhos da entropia.

Mas a verdade é bem diferente. Ainda que se tenha realmente partido por descuido, tal não ocorreu dessa forma, num momento era uno e todo, noutro um monte de detritos. Não. Tudo começou com uma única racha, perto do bordo, desprezável e desprezível. Uma racha que cresceu e que se ramificou. E quando me apercebi da sua ameaça latente, já era demasiado tarde.

Percebi então que discretamente, silenciosamente, ela o tinha consumido até às entranhas, envenenado a sua essência até ao fulcro. Aquela racha era apenas a parte visível desse universo cacofónico e amorfo que se tinha instalado longe da minha vista, nas profundezas do meu ser. E agora, quando tudo desabava, à medida que os últimos elos que mantinham a coesão se desagregavam, atormentados por tortuosas correntes de caótica destruição, eu via então, enfim, estupidamente impotente, o espelho a fragmentar-se, as rachas a espalharem-se, a ramificarem-se, a rasgarem aquela superfície lúcida, que rangia, num esforço vão, que quebrava, com um tínido agudo e acutilante, que cedia face à pressão insuportável das forças que a corrompiam, lentamente, de uma forma agonizante, como um homem que se afoga, lutando pela sua vida.

E eu apenas podia olhar, enquanto o meu espelho se desfazia. Pensei que as rachas se continuariam a dividir infinitamente, qual fractal, eventualmente reduzindo-o a pó. Mas a sua demanda destruidora acabou por parar, e neste estado ele ficou, frágil, incrivelmente frágil, como que esperando qualquer pretexto, por mais pequeno que fosse, mesmo um sopro talvez, para concluir a sua ruína, para desabar no caos absoluto, finalmente.

Perplexo, fiquei a olhar longamente para as fendas que o rasgavam, que o dilaceravam, desfigurando a sua face límpida e pura, outrora lisa, agora profundamente irregular, cada um dos fragmentos ainda reflectindo o mundo, teimosamente, como se nada tivesse sucedido, como se pensassem que desprezando a inevitabilidade do que acontecera, poderiam diminuí-la ou mesmo apagá-la. Mas a verdade é que já não havia harmonia.

Cada pedaço do espelho apontava numa direcção diferente, reflectia uma parte diferente da realidade, como um exército dispersando atabalhoadamente, após a perda do seu general, cada um para seu lado, sem ordem nem rumo. Só me apercebi, no entanto, da verdadeira dimensão deste facto, quando, deixando de olhar para os pormenores de cada fragmento, me afastei e olhei para a imagem que se formava do lado de lá.

O que vi deixou-me mudo.

A própria realidade partia-se ao entrar no espelho e, para sempre aprisionada nos seus labirintos, consumia-se e corroía-se. E quando fitei o rosto que se escondia para lá da teia quebradiça do vidro polido, apenas pude conter um grito de pavor sufocante, assombrado por uma visão que me viria a atormentar para o resto da eternidade, daquilo que existe dentro de mim, daquilo que apodrece nas vísceras da minha mente.

Uma cara cadavérica, diabolicamente distorcida, profundamente truncada, como se tivesse sido talhada com um cinzel. E bem no fundo das suas órbitas encovadas, um par de olhos cruéis espreitavam, negros e vazios, fitando-me fixamente, tenebrosamente. Quis fugir. Quis correr. Quis fechar os olhos e acreditar que se voltasse a abri-los acordaria e tudo estaria bem outra vez.

Mas não conseguia, estava paralisado, não conseguia mexer-me, não conseguia desviar o olhar daqueles olhos terríveis que me fulminavam, que me penetravam a alma, sondando violentamente as profundezas do meu espírito, queimando tudo na sua passagem. E o som, o som desesperado dos gritos aterrorizados ecoando dentro do meu crânio, como se aquela sonda cortante trouxesse à superfície todas as más recordações que jaziam nos recônditos do meu inconsciente.

Em breve, senti-me desfalecer. O negrume apoderava-se de tudo à minha volta enquanto o meu corpo era arrastado por uma força inexpugnável, em direcção àqueles olhos horripilantes. Quis resistir, quis lutar, mas era impossível, as vozes dentro da minha cabeça não paravam, gritavam cada vez mais e mais alto, num terror indescritível, alucinante. Os olhos do outro lado do espelho pareceram inflar, absorvendo toda a realidade, enquanto eu era arrastado por uma força esmagadora na sua direcção, como se o vácuo daquele olhar me estivesse a puxar para o seu interior, empurrando-me contra o espelho estilhaçado.

Por fim, no limiar da inconsciência o meu corpo cedeu. Como que acelerado pela gravidade esmaguei-me brutalmente contra o vidro que colapsou quase instantaneamente, explodindo em milhares de estrelas de cristal cintilante. Perfurei a superfície e rodopiando lentamente caí no negrume infinito. Antes de perder os sentidos, apercebi-me que tinha entrado noutro mundo, noutra dimensão, noutra realidade. Eu estava do outro lado do espelho. E com uma lucidez incrível, inexplicável, sabia-o, sem saber como: não havia caminho de volta.

Ocaso

Nas malhas insondáveis da memória vive um monstro sem rosto e sem nome.

Uma estação de comboio.

É velha e feia e suja e tem as lágrimas e a tristeza das partidas cravadas nas lajes gastas do chão. O carril perde-se na planura inóspita e ao fundo, ainda longe, surge a silhueta grosseira de uma locomotiva.

Silêncio.

O vento arrasta as folhas pelo cais deserto e alvoroça a erva num prado distante. O céu está escuro. O relógio da estação marca cinco horas e nove minutos no crepúsculo fustigante de Inverno.

Os carris guincham, doridos, à medida que a máquina se aproxima com um estrépito rápido, rítmico, monótono, fatigante. O comboio abranda com um assobio estridente e detém-se, suspirando de cansaço, e de novo, o silêncio.

Um homem alto com um chapéu preto.

Desce os degraus para fora da carruagem e pousando uma grande mala de cabedal no cais, perde o olhar na solidão da paisagem, num momento que se alonga pelo horizonte que a vista abarca, até ser interrompido pelo apelo angustiado do assobio do comboio, que retoma custosamente a marcha com um martelar metálico e indelicado que fere a quietude da planície mas que rapidamente se dispersa na lonjura.

E de novo um silêncio pacífico, melancólico, banhado por uma brisa suave, quase inaudível, que transporta a apatia do mundo. O homem tira o chapéu preto da cabeça e é esmagado por uma tristeza que lhe surge nas entranhas, que o transborda e que se escoa por entre as lajes cinzentas do cais deserto.

Sobre a compulsão de escrever

Veio-me à cabeça uma ideia de Scott Adams, o criador da banda desenhada Dilbert; a de que no futuro não vão haver pessoas com a profissão de jornalista, porque, porquê pagar a alguém para nos contar coisas quando todas as pessoas à nossa volta estão sempre a querer contar coisas, mesmo quando ninguém lhes pergunta nada?

O ser humano tem uma compulsão para falar. Gosta muito mais de falar do que de ouvir. Desta forma, no futuro, graças à internet, não serão necessários jornalistas; as pessoas que presenciarem as notícias em primeira mão vêm a correr postá-las na net, para todo o mundo saber.

A ideia está melhor desenvolvida no livro "O Futuro Segundo Dilbert", não tenho paciência para a expor melhor.

Porquê a última pergunta?

A última pergunta é um dos meus contos favoritos e pertence à antologia de contos de Isaac Asimov, "Nine Tomorrows".

Proponho a todos os que não o conheçam a sua leitura, aqui (está em inglês).

Acerca da expressão anhoco e anhar, utilizadas no post anterior

É interessante notar que ao começar a escrever este post, já me surgiu ideia para mais um.

Isto de deixar jorrar a diarreia cerebral tem o seu quê de viciante.

Talvez comece a perceber o porquê de ter um blog, mesmo quando não se tem nada para dizer (como é o meu caso).

Estive a ver na wikipedia e não há qualquer referência a esse tão relevante verbo, "anhar", que utilizei no post anterior.

Como presumo que nem todos estão familiarizados com o conceito, venho aqui tentar propor uma definição:

anhar - acto de quem anha; preencher o quotidiano com ocupações frívolas e inúteis geralmente como maneira subliminar de contornar as obrigações;

donde deriva imediatamente:

anhoco - pessoa que anha muito.

Não posso dizer que perdi muito tempo a pensar nestas definições, até porque este é um blog de diarreia cerebral, não vou pensar muito em nada do que escrevo. Como tal, proponho aos que não a acharem uma boa definição que sugiram outra melhor.

Inauguração

O meu amigo e colega Marco Robalo é um dos maiores anhocos de sempre e a sua teoria é que a melhor maneira de anhar é postar num blog.

Ele já criou e manteve uma larga quantidade de blogs, todos eles dedicados à enorme diarreia cerebral que lhe corre a jorros pela cabeça. Alguns deles chegam até a ter referências à sua diarreia intestinal.

Acontece que também eu sou um anhoco, principalmente quando tenho coisas importantes para fazer, como estudar para o exame de electromagnetismo da próxima quarta-feira. Como tal, resolvi, à imagem do meu amigo e colega, criar este blog.

É o meu primeiro blog e este é o meu primeiro post.

Uma coisa que acho estranha nisto dos blogues é o facto de estar a escrever como se estivesse a falar para alguém, quando sei que no fundo o propósito do blog é apenas falar comigo próprio, mas com toda a gente a ouvir.

Parece-me que há um qualquer fetichismo exibicionista no conceito.

Bem, mais uma vez à imagem do Marco, não tenciono que os meus posts tenham qualquer significado e que deixem as pessoas num estado de reflexão. Como tal, vou dar esta inauguração por encerrada sem mais delongas, até porque acabou de me surgir uma ideia para um segundo post.

Até já.