Sobre este blog

Este blog publica exclusivamente conteúdo original da minha autoria (ver à direita) e serve o único propósito de garantir a minha imortalidade:

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- In Is Google God?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Piropo

Às vezes a minha vida tem um quê de kafkiano.

Há uns tempos ia a descer a Duque de Loulé com o Hugo, em direcção a casa. Eram umas 11 da noite e avisto ao fundo do quarteirão um dos mendigos aqui da zona.

No meu quarteirão há muitos mendigos.

Há um que dorme à entrada do meu prédio todas as noites e resmunga sempre que chegamos tarde a casa por fazermos barulho ao abrir a porta da rua.

Há um que veste um casaco cor de vinho e consegue ficar horas de pé a fitar fixamente o vazio. Uma vez saí de casa às 9 da manhã e encontrei-o no meio do passeio a olhar para o outro lado da estrada. Voltei a casa eram 5 da tarde e ele estava na mesma exacta posição, no mesmo exacto sítio. Estou convencido que não pestanejou uma única vez nesse espaço de tempo. Gostava de saber o que lhe ia na cabeça.

Há um, e foi este em particular que vi nessa noite de que vos falo, que desperta em mim um enorme fascínio. Tem uma longa barba negra, espessa e impenetrável, um ninho de cabelos negros enriçados e está sempre completamente bêbado, com os olhos esgazeados, vermelhos de sangue. Costuma vaguear lentamente pela rua com um ar meio delirante e de vez em quando prega um berro altíssimo numa voz cavernosa que assusta toda a gente em volta. Nesse berro ele diz sempre a mesma frase, uma frase que me apoquenta, que me surge à noite quando não consigo dormir, uma frase críptica que oculta uma verdade profunda que não consigo deslindar por completo:

"ISTO É TUDO CARNE PA CANHÃO!!!"

Este homem é um filósofo.

Possui uma outra frase que costuma gritar aos outros mendigos. Grita tão alto que às vezes ouço-o em minha casa, no quarto andar:

"VAI-ME FAZER ESSA BARBA!!!!"

À primeira vista esta frase pode parecer mais mundana que a anterior, mas estou convencido que ela esconde uma profunda crítica social e que ao gritá-la este homem pretende alertar-nos para a mesquinhez da condição humana - quão frequente é condenarmos nos outros coisas que nós próprios temos ou fazemos?

Este homem é um génio, uma cabeça à frente no seu tempo.

Este homem é muito provavelmente a encarnação de Deus, que veio ao mundo na forma de um mendigo bêbado para nos pôr à prova. Pois ele grita alto e bom som verdades maiores que a vida, mas como por fora parece apenas um bêbado maluquinho e malcheiroso as pessoas não lhe ligam.

Eram então 11 da noite nesse dia e estava ao fim do quarteirão o mendigo filósofo, com o seu olhar estrábico. Caminhamos na sua direcção e no sentido oposto vemos uma mulher que era um autêntico avião, vestida com roupas muito justas e um decote voluptuoso. Ficámos os três a olhar para ela - eu, o Hugo e o mendigo.

Quando estávamos próximo de nos intersectar todos uns com os outros, o mendigo enche os pulmões e grita o piropo mais invulgar que já ouvi:

"OVOS COM ANANÁS É BOM!!!"

A rapariga deu um pulo, quase se desiquilibrando nos seus saltos altos.

...

"É bom é."

Depois deste episódio insólito continuamos a descer a rua. Ao fim de 20 metros viro-me para o Hugo: "Mas ovos como? Fritos? Cozidos? Mexidos?"

O Hugo reflecte durante uns instantes e vira costas, voltando a subir a rua, para ir ter com o mendigo. Chega ao pé dele e pergunta-lhe, "olhe desculpe, mas isso é ovos fritos, mexidos, ou como?"

E o mendigo responde-lhe: "Ou fritos ou mexidos."

Impressiona-me o facto de todas as frases produzidas por aquela boca serem tão intrigantes. Pois ele respondeu convictamente "ou fritos ou mexidos". Sendo que há tantas maneiras de fazer ovos (escalfados, cozidos, recheados, panados, etc) qual é a probabilidade de as duas únicas maneiras de comer ovos com ananás correspondam precisamente àquelas que o Hugo sugeriu na sua pergunta? Por outro lado, será que ele queria apenas dizer que não podiam ser fritos e mexidos ao mesmo tempo, tentando desta forma chamar a atenção para o facto de que não podemos ter tudo e que a vida é feita de opções e sacrifícios?

Perco muito tempo a matutar neste assunto.

Os mendigos do meu bairro costumam reunir-se a ver televisão na montra da loja da Sony, mesmo ao lado do meu prédio. Ficam ali horas e horas a ver a bola, as novelas, os reclames, o que quer que esteja a dar.

Recentemente fizeram uma vaquinha com o dinheiro das esmolas e foram aos chineses comprar um comando universal, para poderem mudar de canal.

Às vezes a vida tem um quê de kafkiano.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Autopromoção

Hoje dei por mim sem qualquer sentido de individualidade. Deve ser consequência de viver numa grande cidade… Na tentativa de a recuperar vou fazer um pequeno exercício de autopromoção.

Coisas não triviais que eu sei fazer:

- Dar um nó de correr usando apenas uma das mãos, para me poder safar se alguma vez ficar pendurado numa rocha por uma mão sem hipótese de me agarrar a mais lado nenhum.

- Deitar tempo fora.

- Estalar o mesmo dedo um número arbitrário de vezes, sem interrupções.

- Comer um super-menu no Mcdonalds, comer mais dois hambúrgueres porque fiquei com fome, chegar a casa e ver que encomendaram pizza, ficar com inveja e encomendar duas pizzas médias e comê-las inteiras.

- Comer 2 menus e um total de 6 hamburgueres no Burger King. No caso do Mac o record foi de 8.

- Comer um menu para 6 pessoas da telepizza acompanhado por um amigo.

- Deitar-me estupidamente tarde.

- Chular comida a uma pessoa até que a pessoa ache que compense dar-me só para não ter de me ouvir mais.

- Browsing no Mozzila e no windows. Sou muitíssimo mais competente nesta tarefa que a maioria da população.

- Deixar toda a gente fascinada com o tamanho do meu pé.

- Ter um quarto acolhedor independentemente das suas características originais.

- Rebolar ininterruptamente na cama enquanto durmo.

- Engonhar.

- Ser extremamente mal encarado quando não estou com paciência para aturar as pessoas.

- Escrever com a mão esquerda.

- Passar o challenge “least time” da câmara 18 do Portal em um 1:05 segundos.

- Acreditar no que me dizem mesmo quando é estupidamente óbvio que é mentira.

- Manter uma relação durante 4 anos and counting a 300 quilómetros de distância.

- Imitar um alemão.

- Ganhar um edge.

- Fazer os outros trabalhar para mim.

- Fornecer trivia em quantidades industriais.

- Comer sopa azeda só porque tive trabalho a fazê-la e não quero estar a deitá-la fora.

Já me sinto mais personalizado.

Este post merece sem dúvida o seu marcador.

V for Vendetta

O Hugo, para se vingar do meu post anterior, trancou-se no meu quarto e mudou-me a pass do youtube, para que eu não conseguisse fazer o login.

São 3 da manhã. Através de um processo moroso consegui recuperar a minha conta do youtube e mudei de novo a sua pass. Fiz o mesmo com todas as minhas contas online de email, messenger, etc, o que foi trabalhoso, mas não podia correr riscos.

Fiz também uma password sem a qual não se consegue entrar no meu windows e tentei fazer uma para a protecção de écran, que activaria ao fim de um minuto de inactividade, mas infelizmente não o consegui concretizar. É pena porque já tinha escolhido uma protecção de écran muito apropriada.

Dei-me a todo este trabalho porque antes disso consumei uma contra-vingança desproporcionada, da qual me sinto orgulhoso:

Consegui hackar praticamente em todas as contas online do Hugo, incluindo a dos seus dois emails, a do youtube, a do blogger, a do messenger, a do IMDB e não sei se não me estarei a esquecer de mais alguma.

Não consegui hackar o fenix, o mytmn, a caixa directa (não posso admitir que tenha tido esperanças) e o bet and win, este último porque não tive oportunidade uma vez que o site estava em baixo.

Em todas estas contas mudei a pass para outra que diz algo humilhante para o Hugo. A nova passe de momento permanece apenas na minha posse.

Penso que ele terá uma pequena surpresa nos seus próximos logons, e apenas conseguirá perceber o que se passa quando vier visitar este blog...

Hugo, se me estás a ler neste momento gostaria de te dizer isto. Como já deves ter reparado, o último post que foi publicado no teu blog (http://por-motivos.blogspot.com) não foi escrito por ti. Pois bem, o texto desse mesmo post foi reencaminhado para toda a tua lista de contactos do yahoo...

Desejo-te um óptimo Natal.

Bem já é tarde, vou dormir.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A Vida depois do Teorema de Godel

No outro dia pus-me a ler o artigo da Wikipedia sobre o Teorema da Incompletude de Godel, que de agora em diante designarei por TIG.

Não sei se o percebi bem, mas se percebi, é das coisas mais brutais que já me foram dadas a conhecer.

Como achei que o artigo não estava muito bem explicado tentarei eu próprio expor o seu conteúdo de uma forma que considero mais legível, na esperança que este teorema possa ter um impacto tão grande no leitor como teve em mim. Por outro lado, se o leitor for um entendido na matéria e verificar que estou a dizer alguma bacorada, peço-lhe que me corrija.

Uma das coisas que falta no artigo da wiki é contextualização, por isso é por aí que começo:

Uma Teoria matematizada, e é a este grupo que pertencem todas as teorias desenvolvidas de forma rigorosa, num sentido muito geral, é uma estrutura constituída por dois alicerces:

1. Um conjunto de axiomas, ou verdades auto-evidentes, isto é, um conjunto de proposições cuja validade é tão óbvia que se considera desnecessário prová-la.

2. Um sistema formal, ou seja, um conjunto de regras lógicas cuja validade também tem de ser assumida.

Isto significa em particular que uma Teoria é sempre limitada na medida que precisa sempre de pressupostos para ser construída e não existe nenhuma maneira recursiva de testar a validade destes pressupostos (daí o seu nome).

A partir dos axiomas usa-se o sistema formal (as regras) para retirar corolários, isto é, proposições que também são verdadeiras em consequência dos axiomas serem verdadeiros.

Estes corolários são os teoremas.

Uma teoria diz-se completa se todas as proposições verdadeiras podem ser derivadas dos axiomas utilizando o sistema formal, isto é, se não fica nenhuma verdade de fora, se não há verdades que não sejam consequência dos axiomas.

Uma teoria diz-se consistente se nunca for possível derivar dos seus axiomas duas proposições contraditórias, ou seja, se uma proposição e a sua negação não podem ser ambas verdadeiras.

Peço ao leitor que antes de prosseguir absorva bem o significado destas duas propriedades. Fui propositadamente redundante ao defini-las, para que o que vou dizer a seguir tenha mais impacto.

O TIG diz o seguinte:

Uma teoria não pode ser simultaneamente completa e consistente.

Pensem nisto.

O TIG deita por terra de uma vez e para sempre o objectivo final da física: derivar todas as leis do universo a partir de um conjunto de propriedades básicas, fundamentais.

...

Agora que a minha motivação com o meu curso estava no seu ponto mínimo, sai-me um teorema que faz o resto do trabalho.

This is worthless.


_________
Algumas das consequências científicas e filosóficas do TIG, bem como a ideia que está por trás da demonstração (de uma simplicidade infantil, como muitas das mais geniais ideias) podem ser encontradas aqui.

Obs. - Na minha exposição omiti alguns pormenores técnicos e cometi algumas imprecisões porque quis reduzi-la ao mínimo de maneira a que a ideia fosse plenamente legível.

sábado, 1 de dezembro de 2007

O Berço da Vida

Gostaria de vos falar da casa que habito.

Gostaria de começar por referir que sou uma pessoa asseada, que aprecia a limpeza dos espaços que me rodeiam, que retira um sentimento de qualidade de vida quando pode deixar cair uma coisa no soalho e simplesmente voltar a pegar nela e agir como se nada tivesse acontecido.

Deixar cair alguma coisa no soalho da casa em que habito é uma tragédia.

É como quando o herói apanha a mão da mulher que ama mesmo a tempo de a impedir de cair no precipício, perto do clímax do MAM (Mainstream Action Movie) e a imagem fica em câmara lenta e eventualmente a mão escorrega e ela cai, e eles olham-se nos olhos durante a queda, exprimindo nesse olhar todos os sentimentos inconfessados, acompanhados de uma música dramática com violinos e ele grita um "Não" que se prolonga por vinte segundos. É bonito e comovente de se ver num MAM, mas a realidade com que eu convivo é muito pior.

Se deixares cair uma coisa no meu soalho o mais sensato a fazer é incinerá-la.

Teorema: O chão da minha cozinha é um isomorfismo que transforma todo o objecto cadente de massa M num monte de merda amorfo com massa igual ou superior a 2M.

Demonstração: empírica.


Topologia do meu soalho:

Há uma camada heterogénea que cobre toda a extensão exposta ao ar formada por pó, cabelos, pintelhos, pedaços de picocas, flocos de cereais, migalhas de pão e outras partículas provenientes de comida em geral. Esta camada apresenta uma espessura média de aproximadamente 2 milímetros, apresentando em diversos pontos aglomerados de cotão mantidos coesos por uma mistura de cabelos e pintelhos. Há locais que têm maior concentração de pintelhos, como a casa-de-banho e outros em que é a comida que predomina (cozinha). Por cima desta camada encontram-se espalhadas aleatoriamente enormes quantidades de louça e roupa suja. A roupa suja tende a concentrar-se em grandes montanhas no Hall, impedindo a entrada no apartamento e também no chão da casa-de-banho, na marquise, e no quarto do Zé. Estes últimos três sítios são dos menos convenientes para se amontoar roupa porque são os sítios mais nojentos da casa.

A casa-de-banho porque o chão está sempre cheio de poças que nem sempre são de água.

A marquise porque é o sítio onde está o balde do lixo, sendo que o balde é apenas um ponto de referência, é mais rigoroso dizer que a marquise é, em si, o lixo; e onde está também a máquina de lavar roupa, que verte água.

O quarto do Zé pelas razões óbvias, isto é, por definição.

Para vos dar agora uma visão mais completa, há que referir ainda o estado da sanita, que infelizmente é indescritível utilizando apenas o vocabulário da língua portuguesa, mas do qual se pode dar uma boa aproximação definindo-o como o superlativo do repugnante; a banheira, que tem quase tantos pêlos e cabelos como o soalho e uma massa crítica deles no ralo, estando ainda pululada por rolos vazios e semicheios de papel higiénico que o Zé está sempre a deixar cair lá dentro, folhas de cadernos (não me peçam para explicar) e embalagens de shampô vazias que nunca chegam a ser deitadas fora; o lava-loiças que se devia chamar o "guarda-loiça-suja"; o frigorífico, do qual apresento a nossa definição muito própria:

frigorífico, s. m. - local onde se armazenam grandes quantidades de alimentos frescos e caixas vazias que em tempos contiveram alimentos.

De notar que esta definição omite o facto de que os alimentos não ficam armazenados para sempre, mas fá-lo não por ser óbvio que não ficam, é precisamente pelo motivo contrário. De facto, os únicos alimentos que chegam a ser alguma vez retirados do interior do frigorífico são os que estão à vista de quem abre a porta. Os restantes são deixados a apodrecer indefinidamente, até que se passa tanto tempo que se transformam num líquido negro e viscoso que conflui para a poça negra e viscosa que está na última prateleira. O espaço que antes ocupavam é preenchido por um novo conjunto de alimentos, que por não estarem à vista enfrentarão o mesmo amargo destino. This is never-ending.

Há ainda a mesa da cozinha que é onde comemos. Raramente vemos o tampo, que é de um branco tão bonito, porque normalmente a mesa está também ela coberta de loiça suja, comida em variados estados de putrefacção, caixas de pizza, migalhas, garrafas, cascas, e podia continuar esta enumeração Ad Infinitum e Ad Nauseum.

Não é de espantar, de facto, que sempre que vem cá um novo convidado ele franza o nariz e pergunte se nós não teremos trancado por engano o gato na despensa e que nos tenhamos esquecido de lá ir durante seis meses.

Essa é a altura em que eu admito, envergonhado, que não temos nenhum gato, nem vivo nem morto e faço um ar encavacado até o convidado mudar de assunto ou eventualmente ir-se embora, agoniado.

Falei-vos da minha casa e de como ela é suja, nauseabunda e repugnante.

Mas nem tudo é mau na minha casa.

De facto, no mais medonho dos sítios pode acontecer a mais bonita e maravilhosa das coisas.

A minha casa, amigos - e friso - é um Berço da Vida.

Nos sítios mais inesperados (ou não) prolifera vida nesta casa. Quantas vezes não vou buscar comida ao frigorífico e encontro lá no fundo uma caixa de tomates, já podres, de onde brotam fungos com grandes pêlos?

Quantas vezes não encontro esses mesmos fungos em embalagens abertas e semi-cheias de iogurte, na fruta, em variados legumes e em tantos outros alimentos?

Bolores no pão, dezenas de mosquinhas nas prateleiras, nas quais se encontram batatas podres com panóplias de colónias dos mais variados seres vivos.

E quando, após vários meses, decidimos tirar a montanha de roupa suja da marquise e descobrimos que as camadas superiores de roupa, ao abafarem as inferiores, criaram condições óptimas de temperatura e humidade para que, juntamente como o suor, o chulé e a água podre que verte da máquina de lavar, se criasse um morno ninho no qual se desenvolveu um gigantesco bolor?

Nestas alturas enchemo-nos de um orgulho paternal por toda a vida que nos rodeia, que para todos os efeitos fomos nós que criámos, mesmo sem o pretendermos.

E sentimo-nos unos com Deus.

De facto não, porque todos nós somos ateus.

De facto, o que acontece é que nos sentimos Deuses.

E perguntamo-nos, até onde pode isto ir? Até que ponto pode a vida proliferar num ambiente como este, que para todos os efeitos é uma fonte limitada de matéria orgânica?

E nesta linha de pensamentos o Hugo resolveu fazer uma experiência. Retirou do frigorífico uma taça que em tempos conteve uma papa de inertes flocos de aveia e que agora era um universo diversificado e luxuriante de fungos, bolores e sabe-se lá que mais. Colocou-a sobre a máquina de lavar e cobriu-a com uma marmita.

E ali deixou aquilo durante semanas.

Ocasionalmente levantava a marmita e observava o ecossistema fechado que ali tinha sido criado. Uma floresta exótica, infestada por dezenas de minúsculas mosquinhas que esvoaçavam incessantemente ali em volta.

A proliferação abrandou rapidamente. Ao cabo de 3 meses a taça era o retrato da morte. O ecossistema não era auto-sustentável e colapsou. Aquilo que em tempos fora um impressionante caldo de vida era agora uma massa preta, sólida, opaca, imperscrutável.

Deitámos a taça e a marmita fora. No tampo da máquina de lavar ainda se pode ver uma auréola negra formada por dezenas de minúsculas moscas mortas. Vamos deixá-la lá para sempre, como tributo a esta bonita colónia que já não está entre nós.

Recentemente aconteceu um novo milagre e desta feita de forma totalmente fortuita.

O Marco foi lá a casa fazer um dos seus maravilhosos cozinhados. Em vez de vos dar a receita deste prato específico, vou antes dar-vos algo mais valioso, que é o algoritmo utilizado pelo Marco em qualquer receita:

Cozinhado à la Robalo

- Encha uma grande panela de água até acima, independentemente da quantidade de comida que pretende cozinhar. Ponha-a ao lume, destapada.
- Ponha todos os ingredientes que quiser dentro da panela, desde que contenham apenas uma porção infinitesimal de gordura. Não descasque, corte ou pique o que quer que seja, para conservar o sabor naturalmente merdoso dos alimentos. Para evidenciar ainda mais este aspecto, abdique de quaisquer condimentos, em particular do sal.
- Espere um quantidade arbitrária de tempo, desde que maior do que 15 minutos (por algum motivo este minorante não é função nem da quantidade de comida nem da intensidade da chama).
-Use uma concha de sopa para se servir. Não escorra a água pois pode correr o risco de que o cozinhado não fique completamente empapado e insípido.

Nota: Se não consumir tudo na altura guarde o restante no frigorífico (SEM ESCORRER!!!) e coma no dia seguinte sem aquecer.


Voltando onde estávamos, os ingredientes que o Marco adicionou nesta situação concreta foram arroz, batata, cenoura, pescada, e couve, tudo inteiro e por descascar. Naturalmente não se comeu quase nada.

No dia seguinte o Marco foi embora e a panela ficou lá, cheia de comida até 3/4.

Eu recusei-me a lavar a panela. O Hugo recusou-se a lavar a panela.

A panela é do Zé. Como vimos anteriormente, por definição, o Zé não se importou com o facto de ninguém lavar a panela.

Tapámos a panela e pusemo-la ao lado do fogão para que o marco a lavasse na próxima visita.

A próxima visita só decorreu passado um mês, altura em que já era tarde demais.

Poucos dias antes da chegada do Marco destapamos pela primeira vez a panela. O cozido tinha-se transformado numa pasta castanho clara, muito espessa, com pequenas poças de um caldo igualmente castanho. Fora do caldo proliferavam vários fungos, nada de muito anormal, mas deixa ver melhor o que é isto?...

...


...


LARVAS!!!!!!!!!!!! OMmotherfuckingG!!!

Dezenas de larvas brancas a contorcerem-se numa pasta castanha amorfa!

E depois olhamos melhor e nas poças de caldo notamos uma borbulhagem...

MAIS LARVAS!!!! E MUITÍSSIMO MAIORES!!! E NÃO PÁRAM DE SE CONTORCER DE FORMA REPUGNANTE, DANDO A ILUSÃO QUE O CALDO BORBULHA!

Acreditem que dá voltas ao estômago.

Gostava que a minha descrição fosse mais vívida, mas espero que tenham ficado com a noção. Aquilo era uma coisa à filme de terror.

Do tipo, tão a ver quando um bicho morre e depois é comido por larvas?

That's what i'm talkin' about...

Fuck!


De alguma forma, aquela conjugação de alimentos formou uma autêntica fornalha de matéria orgânica. Mesmo depois de fecharmos a panela um cheiro pungente persistiu durante muitos minutos. Dias depois, quando voltámos a levantar a tampa, novo choque:

As larvas espalhavam-se ao longo das paredes da panela. Estavam a trepá-la, a querer sair. Já havia algumas na parte de dentro da tampa!

Holy fuck, esta panela tem de ir para o lixo e é já!

...

Por outro lado....

Esta merda é mesmo nojenta, temos mesmo de mostrá-la a toda a gente que conhecemos!!

Assim a panela ainda ficou por lá durante vários dias. Só levantávamos a tampa para mostrar o espectáculo aos visitantes que apareciam.

Ontem eu e o Zé decidimos por-nos a arrumar a cozinha. Normalmente não o fazemos porque como somos de física sabemos que a entropia de um sistema tende sempre a estabilizar a partir de uma certa ordem. Depois de atingida essa ordem a cozinha já não se caga mais.

Aquilo a que muitos chamam de "aterro", nós chamamos o "ponto de equilíbrio".

Estávamos a arrumar a cozinha e nisto eu levanto um saco do chão ao lado do frigorífico e encontro por baixo dele uma conjunção de pequenos bastonetes brancos. Zoom in. Zoom in.

LARVAS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Um carreiro de larvas, mesmo encostadas à parede, claramente vindas da panela (de que outro sítio podiam vir?) e que se esgueiravam para trás do frigorífico.

Em poucos dias, sem que nunca nos tivéssemos apercebido, estas larvas conseguiram de alguma forma fugir da panela e percorrer os 2 metros que as separavam do local onde as encontrei...

E depois, horror dos horrores, o carreiro continuava por ali fora, arredámos o frigorífico e deparámo-nos com uma visão horripilante... Mais de uma dúzia de larvas já ali tinham ido parar... Estavam duas molas da roupa no chão por baixo do frigorífico, fui apanhá-las e larguei-as de terror ao aperceber-me que estavam cheias de larvas por baixo.

Eu vivo com duas pessoas nojentas mas que são extremamente hipocondríacas. Para o Zé estava fora de questão simplesmente varrer as larvas dali para fora e pô-las no lixo e levar o lixo e a panela de uma vez para sempre daqui para fora.

O Zé precisava de álcool. Procurou por toda a casa, escrupulosamente. Não encontrou.

"Não há álcool em lado nenhum", disse ele abatido, quando voltou à cozinha depois de ter virado o apartamento todo ao contrário, esvaziando gavetas e armários.

Olhei para ele compadecido, fui à casa-de-banho e peguei na garrafa cheia de álcool que estava em cima do lavatório. Os olhos do Zé brilharam fulgurosamente quando a viu. Arrancou-ma das mãos e começou a esguichar aquilo pelo chão todo atrás do frigorífico.

Quando o vi a fazer aquilo confesso que tive um mau pressentimento. Estamos a falar ainda de um metro quadrado de chão. Por cima do qual estão os cortinados da janela da marquise...

Peguei rapidamente nos cortinados e afastei-os. O Zé ateou fogo a um pedaço de papel e deixou-o cair na poça de álcool.

No instante em que tocou no álcool a chama alastrou quase instantaneamente para toda a área que tinha sido irrigada, com um som característico da combustão. Chegou até mim uma onda de calor enquanto o meu cérebro tentava processar o facto de estar a ver a minha marquise a arder.

É tipo imaginares teres uma fogueira a arder no chão da sala... Sei lá, o cérebro faz curto-circuito, é que não estamos a falar de uma labaredazinha, mas de um metro quadrado de chão e paredes em chamas, um pequeno incêndio ali.

Eventualmente o fogo extinguiu-se e eu chamei a atenção para uma área que tinha larvas mas na qual o fogo não tinha estado. O Zé voltou a esguichar álcool para ali. Reparou que uma das molas ainda estava incandescente e, acto contínuo, trouxe o esguicho directamente até à mola.

O carreiro de álcool pegou fogo como um rastilho, e deflagrou um novo pequeno incêndio na parede.

Ok, aquela cena do rastilho, blá blá blá que o fogo podia ter subido pelo esguicho e entrado pela garrafa, blá blá blá, bem, tenho a dizer isto: aquilo foi E-S-T-I-L-O-S-O...

O fogo consumiu-se e restou apenas uma nuvem de fumo com cheiro a fogueira.

Varremos os detritos. Estava na hora de nos livrarmos da panela.

Quando olhámos com mais atenção para a panela verificámos que na tampa, nas paredes e na zona circundante se podiam ver de facto muitas pequenas larvas, que passavam muito facilmente despercebidas a um olho desatento.

Completamente creeped out tapámos a panela, colámos a tampa com fita cola, pusémo-la num saco e fomos pôr o saco no lixo- não no lixo do prédio, mas num contentor a uns duzentos metros de distância.

Chegados a casa estava na hora de nova purga - desta feita na zona circundante ao sítio onde a panela estava, que designadamente era ao lado do fogão, que por acaso até é um aparelho doméstico alimentado a propano ALTAMENTE INFLAMÁVEL.

A sorte é que o Zé tem um instinto piromaníaco tão apurado que nem sequer esperou que racionalizássemos o que estávamos a fazer, despejou álcool por ali em volta e vá de pegar fogo àquela merda.

Retirei atabalhoadamente os panos de cozinha que estavam pendurados ali perto e fiquei a apreciar o efémero incêndio que decorreu ao lado do meu fogão.

Ah beleza. Ah esterilidade.

Aprendemos assim que não devemos brincar aos Deuses... The Hard Way...

Aprendemos a nossa lição, suspirámos satisfeitos com o desfecho da história...

Missão cumprida.


...


Or is it?...

Apanho uma t-shirt no chão do hall para ver se é minha e por baixo dela vejo um grão de arroz. Não sei se é o meu cérebro a querer acreditar que é um grão de arroz, mas a verdade é que nem ligo, chego ao pé do Zé e decido pregar-lhe uma partida: "Zé, tinhas uma larva debaixo da t-shirt!!"

O Zé aterrorizado vai ao hall, eu digo-lhe que estava só no gozo e ele diz-me "Tavas no gozo?????? ENTÃO QUÉSTA MERDA?????".

Era um bago de arroz. A contorcer-se...



...


Devo referir que o sítio onde estava a t-shirt ficava a uns 6 metros da panela.

Por muito que o autor gostasse de o negar, todo o relato precedente é mesmo verdade, na íntegra.

Esta história pode ser corroborada em parte aqui, por uma testemunha que assistiu a metade dela.