Sobre este blog

Este blog publica exclusivamente conteúdo original da minha autoria (ver à direita) e serve o único propósito de garantir a minha imortalidade:

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segunda-feira, 9 de junho de 2008

Fora-da-Lei

Há uns meses fui expulso da minha casa em Lisboa por ter sido acusado de a assaltar. Este texto sintetiza o que retirei dessa experiência.

Ah esta sensação de infâmia.... Esta doce sensação de infâmia....

Como fiquei viciado nela!....

Os olhares assustados dos outros, dos rectos, mirando-me sob a protecção dos ombros da polícia, simultaneamente curiosos e receosos, então foi ele?, perguntam, em surdina, deixa-me vê-lo, sussurram, e és uma atracção bizarra e são os teus quinze minutos de fama.

Esta deliciosa experiência de me sentir uma ameaça, mesmo quando a única coisa que estou a fazer é apanhar seca de braços cruzados.... Esta exaltação de me sentir perigoso e temido...

Injuriado, mas apenas à distância e protegidos, porque lhes sinto um respeito que só tem um nome: é medo, eles têm medo. Não confiam em mim, vigiam-me cada gesto, estão nervosos com a minha presença espectral, a ideia de ficarem sozinhos comigo fá-los desfalecer.

Um criminoso, nesta casa de bem.

Como o pudemos deixar entrar aqui?

Como pude dormir no quarto ao lado do dele por meses a fio?

Quem diria, viver com um deliquente debaixo do mesmo tecto, mas não, não mais, nem mais uma noite volto a dormir assim!

E assim nos transfiguramos por completo aos olhos destas gentes, ontem inofensivos, hoje monstros diabólicos e sem escrúpulos.

Marginais.

Transfiguramo-nos sem nenhuma razão plausível, racional, sem nenhum facto que o justifique, apenas a mente delirante e histérica dos que foram lesados, que precisam de um alvo, um bode expiatório e sou atacado de acusações.

E grita-me ela que tem toda a legitimidade para desconfiar de mim.

Vez após vez.

E começa a usar cada hesitação no meu discurso, cada pormenor do meu dia de que eu não me lembro bem, cada inflexão na minha voz, para inflacionar a sua suspeita, ao ponto da sua convicção ser tal que eu já começava a achar que só podia mesmo ter sido eu!

Então e o teu colega que esteve aqui hoje de manhã??? Foi ele, tenho a certeza!

O colega em causa é aluno de mestrado em matemática, como tal um completo alienado da realidade. Para ele roubar não tem qualquer desafio pelo simples facto de daí não se poderem retirar tautologias.

Vais falar com o teu colega e eu quero os portáteis aqui, não quero saber de mais nada!

Chegam os polícias e ela acusa-me, um dos guardas leva-me para a cozinha, identifica-me e faz-me esperar uma hora, enquanto os outros dois interrogam a histérica, cuja voz já não posso ouvir a acusar-me, a injuriar-me, difamar-me e caluniar-me, até que a hora passa, aí vêm eles, ouvir a minha versão.

Ou não?

Chega o responsável, o rosto carregado, a enfiar uma luva de cabedal na mão.

Onde é que é o teu quarto, pergunta-me ríspido, e eu indico-o como bom cidadão.

Sentam-me lá, os dois olhando-me de cima, diz-me um, a voz espinhosa, Vou começar já por te dizer que não gosto da tua cara, tens cara de mentiroso, mas aqui já toda a gente te topou... por isso o melhor que tens a fazer é dizer-nos onde é que estão os portáteis porque se não isto vai ser bem pior!

E eu rio-me, meio embasbacado, o que é isto? de onde é que isto veio? Isto são polícias, veêm isto todos os dias, será possível que a outra histérica lhes tenha dado a volta só por me acusar esganiçadamente, sem qualquer prova?

Estás-te a rir, olha que eu não estou a achar piada nenhuma, isto não é uma brincadeira, diz-nos já onde é que estão os portáteis antes que a gente te parta a boca toda! E não vale a pena continuares a tentar encobrir o teu colega, ele já confessou tudo...

E eu fico parvo. Até a história do colega eles compraram. É então assim que funciona a justiça, o primeiro a contar a história é que diz a verdade, ah quem me mandou ser cavalheiro...

Eles nem sequer sabem quem o meu colega é. Nem ainda lhes tinha dado o contacto dele. Mas ele já confessou... Isto as tecnologias modernas são outra coisa.

Continuam a pressionar-me, a acusar-me, a forçar-me a confessar, não vale a penas estares com essas merdas, todos os dias mando para a choça gajos como tu, foste apanhado agora vê se não complicas ainda mais a tua situação.

Já me começo a exaltar mas depois acalmo-me e lembro-me, isto não faz sentido, não vou ceder a este jogo, vou mas é contar aquilo que eu sei.

Saí de casa de manhã, vi a mãe da outra a pôr coisas no frigorífico, cumprimentei-a, fui ao ginásio, voltei passado uma hora, a porta estava entreaberta mas não liguei, pensei que a outra tivesse vindo a casa e que a tivesse deixado assim só para ir buscar qualquer coisa.

Não liguei, não me importei, fui tomar banho, vesti-me, voltei a sair.

Passado umas horas a outra ligou-me, começou-me a contar uma história estranha e eu, na minha boa fé, lembrei-me de ter encontrado a porta aberta...

Imediatamente o tom dela se alterou, agressivo, perguntou por onde é que eu tinha andado naquele dia e eu que já tivera um dia preenchido e estava cansado não me lembrava bem.

Como é possível não te lembrares? Não sabes a que horas acordaste? Não sabes o que fizeste hoje? Olha lá e esteve algum colega teu cá em casa hoje?

Hmmm... não que me lembre não....

Tens a certeza?

Pá acho que não, mas a verdade é que o hoje e o ontem são uma mancha difusa na minha cabeça e eu não me lembrava que tinha visto a mãe dela, que por sua vez tinha visto o meu colega, que tinha só passado lá por casa 5 minutos antes de eu sair, que por sua vez tinha contado a ela que nos tinha visto.

As suas suspeições voam em catadupa, eu digo-lhe para se acalmar, que vou lá ter a casa e vamos tentar esclarecer a situação e ela insiste que tudo o que eu faço e digo e me lembro é muito suspeito e tenta fazer-me contradizer e eu fico nervoso e contradigo-me e ela reforça uma certeza insane e eu vejo-me preso num beco que não sei como fui lá parar....

O seu principal argumento para me incriminar era o facto de eu não ter ficado completamente histérico como ela com o que acontecera.

Acabo de contar isto à polícia e eles gritam-me

MENTIROSO!!!
E o outro vira-se para o primeiro, não, isto não há dúvida, ele está a mentir...

E eu grito-lhes que me metam num polígrafo e eles dizem-me que amanhã passam por aqui de novo e é bom que os portáteis estejam lá...

Isso vai ser um bocado difícil, duvido que quem os roubou tenha intenção de devolver...

Estás a mentir, pensas que nos enganas, merdas como tu já eu estou farto de lidar, vê se pensas bem no que tás a fazer que ainda vais foder a tua vida toda!

E eu rio-me de novo e pergunto qual é o objectivo de toda aquela violência.

Violência? achas que estamos a ser violentos? Alguém te tocou por acaso? Tu não nos queiras ver ser violentos....

Violência verbal também é violência....

E eles riem-se e dizem que me deviam era dar um enxerto ali mesmo.

Pronto, digo eu, não vou continuar neste jogo... A princípio não estava à espera disto, mas vejo que só estão a fazer o vosso trabalho... Estão a ver se eu quebro, se confesso, se me assustam, mas eu não tenho nada para confessar e não vou continuar a exaltar-me com as vossas provocações....

Tu andas é a ver muitos filmes, já foste avisado, amanhã quero os portáteis aqui!

Amanhã vou para o Algarve, digo eu, já tinha isso combinado....

Vais para o Algarve???? Tu já não vais a lado nenhum meu amigo, eu vou agora passar-te uma ordem de restrição e não podes sair de Lisboa até seres interrogado!!!! E virando-se para o outro, olha-me este... tá a ficar nervoso agora quer fugir... Coitado, estes dois já não vão a lado nenhum, nós já temos o número de série, tão tramados, não vale a pena...

Estou muito curioso por saber o que é isso do número de série... Um número que determina a culpa... Há muita coisa que não conheço neste mundo...

Finalmente deixam-me ir e junto-me à maralha exaltada que está no hall, que se cala com a minha chegada, os olhares acusadores, pesados, a outra inquilina chorosa, a irmã da senhoria começa a atacar-me, o cunhado de não sei quem da senhoria a dizer para a irmã da senhoria se calar, a senhoria a dizer-me que o cunhado de não sei quem é advogado, a outra inquilina chorando...

Eu digo que lamento a situação e a irmã da senhoria chama-me ladrão e mentiroso e neste oróburus sem saída fico sem saber o que fazer, ninguém quer esclarecer a situação, ninguém quer analisar os factos, ninguém quer saber o que acho, o que eu vi e o que eu sei, eles já sabem tudo o que precisam de saber e até já sabem o que vão fazer comigo.

Você hoje já não dorme nesta casa.

A outra inquilina tem medo de mim, do ladrão.

Depois devolvemos a renda e a caução, não se preocupe.

Mas hoje você já não dorme cá. E vamos mudar a fechadura.

E eu sinto-me cair numa espiral surreal, rebolar numa bola de neve sem qualquer sentido.

O pasmo é tanto que nem contesto, já não quero perceber, já não quero saber.

Estou aqui há quatro horas a ser espremido e picado quando sou tão vítima como qualquer um de vós, és, és uma grande vítima, foste tu que ficaste sem um portátil de 250 contos!, diz a irmã da senhoria, cala-te!, diz-lhe o advogado, agora sabe-se lá onde é que os escondeu!, cala-te!, gritam a senhoria e o advogado em coro, a outra inquilina chora.

Estou farto. Na altura do primeiro telefonema eu estava a preparar-me para ir jantar. Entretanto passaram-se 4 horas.

Tenho para onde ir, mas passa da meia-noite e fui posto na rua... Podia perfeitamente não ter sítio para ficar...

E digo: Então mas onde é que esperam que eu vá? Expulsam-me da minha casa assim?....

Sua casa? - Diz sarcástica a irmã da senhoria....

Olhe, porque é que não pede albergue ao seu colega que trouxe cá indevidamente hoje de manhã? - diz a senhoria com um sorriso vingativo nos lábios.

Ao trazer estranhos cá comprometeu a segurança da casa, somos forçados a agir assim.... - diz o advogado.

A outra inquilina chora.

Eu vou ensacar umas quantas coisas, entrego as chaves e vou-me embora.

Quero lá saber.

Vou para a minha casa velha, onde fico nos seguintes 4 ou 5 dias.

A casa das larvas, sim.

Um fora-da-lei no exílio.

O rosto vincado pela dureza da vida.

A alma negra de todo o mal que infligiu.

Um coração de pedra.

O olhar sem brilho dos bandidos.

Um foragido.

Perigoso e temido.

Implacável e sem escrúpulos.

Irredutível...

Ah merda....

Esqueci-me de trazer roupa interior....

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O princípio

Envolvido por uma escuridão morna, era como se vivesse permanentemente naquele estado de delicioso torpor que te invade quando estás quase a adormecer. Os sentidos estão abafados, a consciência limpa e vazia e o único pensamento que te ocupa a cabeça é o de conforto, de aconchegamento e de paz.

O silêncio é total.

A temperatura, perfeita.

O corpo está tão relaxado que nem o sentes.

E assim ele existia, flutuando no vazio, alheio a tudo, desprendido de tudo.

Feliz, sob qualquer definição razoável de felicidade.

Sentindo-se completo.

E neste estado ele permaneceu inalterado por um longo prazo.

Suspenso.

Até que passado um imensurável período de tempo houve uma altura em que sentiu um abalo indefinível, que não dava para perceber de onde vinha nem o que era exactamente.

Um abalo que não altera em nada o teu estado de torpor mas que te faz sentir um formigueiro nervoso dentro de ti, não sabes bem onde nem porquê.

Estás confuso mas nem te interessa perceber a causa, ficas simplesmente à espera que a ansiedade passe e que tudo volte ao normal. E quando lentamente isso começa a acontecer, um novo abalo surge, idêntico mas intensificado, e assusta-te sem no entanto te despertar.

Na tua mente só corre o desejo de que aquilo te deixe em paz, que te deixem voltar ao teu tépido entorpecimento. Desejas isto tão convictamente que simplesmente começas a ignorar estes abalos na esperança que eles se vão embora espontaneamente.

Mas eles não te largam e vão escalando em intensidade e é como se alguém te abanasse vigorosamente para que acordes e tu te recusasses a acordar.

De repente percebes que consegues sentir o teu corpo e a sensação é desconfortável.

Sentes-te enclausurado, abafado.

Tentas esticar-te mas parece que não há espaço.

Tu só queres é adormecer mas de repente é como se tivesse ficado demasiado quente, demasiado apertado.

Tentas esticar-te de novo, mexer-te, mas tens os movimentos presos, estás rodeado por uma qualquer matéria constritiva e aquilo começa a incomodar-te sobremaneira.

Revolvendo-te acabas por encontrar um buraco nessa matéria e espremes-te lá para dentro, na esperança de ficares com mais espaço para poderes voltar ao teu delicioso torpor, que estás desejoso por recuperar.

Espremes-te mais e mais pelo buraco e ainda ficas mais constrangido no seu interior. Tentas libertar-te a custo, enquanto vindos não sabes de onde surgem uns sons abafados, exaltados, nervosos, que te redobram a ansiedade.

Mas porque é que foram interromper assim o teu conforto?

De repente, num espasmo, o buraco parece alargar e és empurrado por ele adentro, em violentas convulsões que te atordoam, uma após a outra. Percorres o seu interior, impotente, empurrado pelas suas paredes, até que de repente és expelido com brutidão e vais parar a um sítio completamente diferente de tudo o que conhecias e o impacto é tão forte que ficas em choque.

Uma luz fortíssima ofusca por completo a escuridão perfeita que te rodeava, ao mesmo tempo que és agredido por sons altíssimos e acutilantes que reverberam por todo o espaço e és invadido por uma horrível sensação de frio. Sentes-te a ser balançado, como se estivesses num barco num dia de tempestade e vem-te um enjoo enorme que nunca tinhas experenciado. Ao mesmo tempo começas a sentir uma angústia profunda, como se de repente precisasses urgentemente de algo mas que não sabes o que é e sem ainda teres acordado começas a entrar em desespero com toda aquela situação.

Porquê?

Que mal fizeste para te fazerem sofrer desta maneira?

Porque é que não te deixaram no teu maravilhoso e confortável estado de completa harmonia?

Neste momento ouves um som agudo ao mesmo tempo que recebes um impacto fortíssimo no corpo. Inicialmente ficas meio extasiado, assustado, tentando perceber que nova sensação é aquela e logo a seguir começas a sentir um doloroso ardor na zona onde recebeste o impacto.

Um ardor horrível.

E sentes-te tão injustiçado.

Porque é que continuam?

Como se já não estivesses a sofrer o suficiente.

E então, completamente desconsolado e ainda invadido por aquela nervosa angústia, sentes uma compulsão incontrolável para abrir a boca, como se isso te pudesse acalmar o desespero.

E berras.

O som quase que te rebenta com os ouvidos.

E para cúmulo dos cúmulos, nada disto te alivia, pois ao abrires a boca uma qualquer coisa entrou lá para dentro e enfiou-se dentro do teu corpo fazendo-o inchar de forma extremamente dolorosa.

Agora também te sentes a arder horrivelmente por dentro.

Em completa autocomiseração, totalmente magoado com o que te estão a fazer, a única coisa que fazes é berrar mais e mais e mais.

E lentamente isso alivia-te a angústia que tinhas começado a sentir.

Continuas a berrar enquanto és envolvido por uma qualquer coisa que te cura a sensação de frio. Voltas a sentir-te mais aconchegado.

As coisas estão a melhorar, mas ficaste tão magoado com todo o mal que te fizeram que não consegues parar de berrar.

Os sons tornam-se de novo mais abafados.

És pousado numa superfície macia, larga e quente, que instantaneamente te transmite uma sensação de calma, de consolo.

Sentes que és de novo agarrado, mas desta feita de uma forma diferente. Este agarrar é profundamente delicado e faz-te sentir protegido. É um agarrar carinhoso que te restitui o aconchego.

Os sons tornaram-se menos intensos e agora ouves uma voz dócil, meiga, maravilhosa, deliciada.

Sentes-te tão cansado, tão magoado por te terem feito passar por isto…

Dói-te tudo.

Esfregas a cara nessa superfície imensa e morna em que estás pousado e sentes uma protuberância rugosa, dura, por onde passas a boca.

Alguma coisa entra para dentro de ti, mas desta feita não te aleija.

É doce e agradável.

Queres mais daquilo. Procuras de novo a fonte daquela sensação, encontra-la e sem saber como, sabes perfeitamente como é que hás-de retirar mais desta coisa que te invade o corpo e te consola.

E à medida que te enches dela começas a sentir-te melhor.

Mais calmo.

E depois do choque passar apercebes-te que estás completamente esgotado.

O torpor regressa.

Finalmente regressa a paz.

Esperas nunca mais voltar a sofrer desta maneira.

E adormeces.

terça-feira, 27 de maio de 2008

O ladrão

Desde sempre se habituara a roubar
Furtava de tudo sem qualquer inibição
Nem parava duas vezes para pensar
Assaltar era para ele uma profissão.

Então houve um dia em que a viu
E ela despertou-lhe uma ânsia inconsequente
Quis apanhá-la mas ela fugiu
E ele perseguiu-a, furioso e demente.

Por fim agarrou-a e trancou-a numa cela
E rejubilou do mais puro contentamento
Tinha só para ele aquela bela singela
Para seu proveito, para lhe dar alento.

Utilizou a força para dormir com ela
E amou-a em noites longas, infindáveis
Todos os dias voltava para vê-la
E trazia-lhe prendas belas e incontáveis.

Fez da prisão um palácio deslumbrante
E rodeou-a de tudo o que lhe poderia agradar
Mas apesar disso e de forma desconcertante
Parecia que não a conseguia de todo amar.

E apesar de tê-la e manipulá-la como queria
Apesar de possuí-la, não a sentia como sua pertença
E por mais que quisesse isto era algo que não percebia,
Que o encheu de uma ira brutal e imensa.

Agarrou-a e abanou-a vigorosamente
Olhou-a nos olhos e ordenou-lhe que o amasse
Bateu-lhe quando ela recusou, veemente
Até que em desespero implorou que o aceitasse.

Forçou-a a unir-se em matrimónio
E engravidou-a para que um filho a conquistasse
Ela pariu-o mas olhou-o como um demónio
Não o quis criar mesmo que ele a forçasse.

A fúria enraiveceu-o até à cegueira
E jurou-lhe a morte se não se conformasse
Afundou-lhe a cabeça na banheira
Só sairia dali quando o amasse.

Viu-a debater-se e soube que conseguira domá-la
Puxou-a para fora para que desistisse
Ela respirou ofegante, mas continuou sem fala
Não vacilando por mais que ele insistisse.

Voltou a mergulhá-la completamente enraivecido
E deixou-a estrebuchar até que parou de lutar
Eufórico soube que finalmente a tinha vencido
E puxou-a para fora, para a deixar respirar.

Mas ela não se mexeu, nem respirou
Tinha um sorriso gélido no rosto contorcido
Já não era ela, foi o que ele constatou
Escapara-se sem nunca lhe ter pertencido.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Quando a realidade é mais estranha do que a ficção..

Na altura em que o que estou prestes a relatar aconteceu, pensei imediatamente em vir aqui fazer um post, mas depois cheguei à conclusão que era completamente impossível transmitir por palavras esta que é provavelmente a mais aberrante experiência da minha vida.

Não obstante, passados 4 meses vejo os pormenores a começarem a dissolver-se na memória e como não quero de modo algum esquecer esta história, vou deixá-la aqui escrita, para meu próprio proveito, para que a possa relembrar para sempre. Estou certo que o impacto no leitor nunca será comparável com a experiência que tive, mas tentarei ser tão vívido quanto conseguir.

Em janeiro deste ano de 2008, comecei a procurar um novo poiso para morar cá em Lisboa.

Digamos que estava farto que a minha casa-de-banho tivesse mais pintelhos no chão do que eu no corpo todo.

Procurei por quartos para alugar na net e encontrei uma verdadeira pechincha: um quarto a 100 euros por mês, perto da minha escola, com água, luz, gás e net incluídas.

Bem, não fui ingénuo ao ponto de pensar que ia ser um sítio fabuloso, mas nunca, nunca me poderia ter preparado para aquilo que viria a vivenciar.

Telefonema:

Eu: Boa tarde, estou a telefonar por causa do quarto a 100 euros em arroios?
Senhorio: Ah sim sim, pois deve ter visto o anúncio....
Eu: pois... Ainda está disponível? Vou partilhar a casa consigo certo?
Senhorio: sim, sim, é que eu estou reformado e agora estou lá sozinho desde que o outro rapaz se foi embora, a casa é pequena mas não tem de se preocupar que eu passo a maior parte do tempo no meu escritório, isto eu também sou uma pessoa que aprecia a privacidade, mas quer dizer desde que cada um saiba respeitar o espaço do outro não haverá problema.
Eu: claro, claro, com certeza... Quando é que lhe dá jeito que o vá visitar?
Senhorio: Sim, sim, realmente, olhe, aquilo são umas águas furtadas, num quinto andar e devo avisá-lo que é um apartamento modesto, não é, eu ainda estive na dúvida se havia de alugar ou não mas como agora estou lá sozinho dava-me jeito, porque sabe, eu sou de [terriola perdida no espaço e no tempo] e gosto de lá ir passar os fins-de-semana por isso dava-me jeito...
Eu: pois... Então quando nos podemos encontrar?
Senhorio: Sim, sim... acho que vai gostar muito do sítio, sabe, é que eu aqui tenho um terraço com uma vista lindíssima sobre Lisboa, uma coisa... impagável!
Eu: Sim? parece magnífico... então e quando é que posso ir conhecer o sítio?
Senhorio: Pois, eu amanhã tenho de ver, de manhã não me dá muito jeito porque tenho de fazer a barba e depois à tarde tenho de [fazer não sei o quê, não sei aonde com não sei quem], mas quer dizer, portanto, digamos [divagação ininteligível]. Pode ser na [data, hora e local]?
Eu: por mim está óptimo, então até lá, muito obrigado, com licença.

Marcámos num café lá perto. Partilhar casa com um idoso não era uma ideia que me agradasse muito, mas por aquele preço...

Sentado na esplanada à hora marcada, 15:30, olhava incessantemente em volta à procura de um olhar que me procurasse, curioso com qual seria o aspecto do meu interlocutor.

Um quarto de hora depois ainda estava nisto e por isso telefonei-lhe. Disse-me que estava um pouco atrasado e que tinha acabado de sair do banho, e que já vinha.

Esperei.

Sempre que via um velhote olhava para ele tentando entrever reconhecimento. Passado meia hora apareceu um senhor, à entrada do café, um ligeiro sorriso nos lábios, a apontar para mim.

O choque foi imediato. Não era nada do que tinha imaginado. Era muito alto e magro, a pele de um branco-amarelado meio esquisito, um pescoço muito comprido e esguio e mãos enormes, vestido em tons de beije com uma camisa muito fina aos quadrados. Era careca no topo da cabeça mas à volta o cabelo era abundante e liso, de um amarelo muito esbatido, chegando quase aos ombros. Usava uns óculos redondos de armações douradas com lentes que lhe ampliavam imenso os olhos e o sorriso revelava uma dentadura muito amarelecida. Fazia-me lembrar algo como o cruzamento entre um gafanhoto e uma avestruz.

Apresentou-se, tinha um nome esquisito de que já não me lembro [sim já sei, olha quem fala] e convidou-me a entrar no estabelecimento.

Pediu um café e fez-me algumas perguntas sobre mim, após as quais iniciou um extenso monólogo em que me contou o suficiente para se escrever uma biografia bastante detalhada.

Eu apenas ia anuindo, continuamente, meio embasbacado, enquanto ele me contava histórias sobre a PIDE e ter estado preso em África, sobre ser jornalista e sobre as reportagens que fez para vários jornais.

O seu discurso transmitia a noção de ser uma pessoa influente e social, o que contrastava por completo com o aspecto andrajoso que apresentava.

A certa altura perguntou-me se eu estava mal disposto.

Eu: Não, não estou óptimo!
Senhorio: É que parece que está com uma cara aborrecida...
Eu: Não, não, continue, por favor...
Senhorio: É que isto é para nos conhecermos percebe, quer dizer, acho que quando se partilha uma casa com uma pessoa devemos conhecê-la minimamente...
Eu: Com certeza, com certeza...

O monólogo prolongou-se. Contou exaltado histórias das semanas recentes e acontecimentos que o revoltavam relacionados com a publicação de uma notícia alegadamente difamadora sobre um ex-presidiário que era amigo dele e que tinha sido preso por assassínio 20 anos antes. As histórias que contava talvez até chegassem a ser interessantes, não fosse o facto de ele não providenciar adequadamente o contexto necessário, tornando o discurso extremamente desconexo.

Aborrecido de morte, tentava dar a entender que tinha alguma pressa e que gostaria de visitar a casa. Quando finalmente saímos do café o sol já se estava a pôr.

Durante a caminhada continuou a falar calorosamente, dando ênfase ao terraço "impagável" que possuía.

O primeiro prenúncio revelou-se quando passámos por uns contentores do lixo, ao lado dos quais estava uma planta de plástico muito velha dentro de um balde.

Senhorio: Oláaaa.... deixa lá ver o que é isto... É bonita por acaso... Mais logo se calhar venho buscá-la.
Eu: ....

Passados uns 100 metros:

Senhorio: Ah estamos quase a chegar... é já ali ao virar da esquina... Está a ver essa porta? - apontou para o outro lado da estrada - lembra-se aí há uns anos que um rapaz do Técnico foi esfaqueado até à morte?... Pois! Foi ali mesmo, no átrio daquele prédio. Cá para mim aquilo era história com drogas, ele devia andar metido nuns negócios quaisquer que estas histórias não acontecem por acaso...
Eu: ...

Aproveitou a deixa para voltar a falar sobre a sua carreira no jornalismo. Levou-me até à porta de um edifício que nem tinha mau aspecto e começamos a subir as escadas rumo ao quinto andar (não havia elevador).

Ao lá chegarmos, em vez de uma porta normal deparo-me com um sólido portão de ferro avançado em relação ao alpendre.

Senhorio: Isto aqui foi porque às vezes vêm aí uns drogados para as escadas injectar-se e então houve uma vez que me arrombaram a porta de casa. E eu pensei, então vou-me agora pôr a mudar a fechadura, para eles me arrombarem a porta de novo? Nãaa.... mais vale gastar mais um pouco e ficar com uma porta mais segura, não é assim?

Foi aqui que pela primeira vez arqueei as sobrancelhas. Podia ver, de facto, através das grades do portão, que do outro lado estava uma porta de madeira, encostada, seriamente amolgada e com a fechadura desfeita.

Ele destrancou o portão e abriu-o, dando depois um encontrão na porta de madeira que estava extremamente emperrada devido às amolgadelas. Ela rangeu estridentemente, arranhando severamente o chão que já tinha uns sulcos profundíssimos.

Gostava de ter uma imagem que mostrasse o que estava para lá da porta, porque receber toda a informação de uma vez, como aconteceu comigo, teria um impacto muito mais forte do que uma descrição. Infelizmente, na altura não tive o discernimento de pensar em como aquilo me iria parecer hilariante quando olhado em retrospectiva, porque nesse momento já eu estava completamente aterrorizado com a possibilidade de ter vindo parar ao covil de um geriatra psicopata.

O ambiente do "apartamento" [sim, com aspas] era tão lúgrube que durante o resto do tempo que lá passei estive constantemente atento às mãos do homem com medo de levar com uma matracoada/machadada/gás pimenta nos cornos.

Para aumentar a minha paranóia, o velho, por simpatia, tinha-me convidado a entrar primeiro, e como tal estava entreposto entre mim e a porta da rua, a minha única saída para a liberdade.

Durante toda a minha estadia naquela casa tive a certeza que se me distraísse ou virasse as costas durante uns segundos iria acabar trancado numa despensa, solidamente amarrado e amordaçado, à mercê das mais bizarras taras homicidas do velho.

O espaço era terrivelmente pequeno, sem janelas, com uma iluminação mortiça e decadente, o tecto baixo completamente enegrecido por infindáveis inflitrações e nenhuma parede estava à vista devido às pilhas gigantescas de tralha que se amontoavam até ao tecto. Era tão exíguo que para me deslocar dentro do compartimento que fazia de hall de entrada, sala de estar e cozinha ao mesmo tempo tinha de passar de lado por um estreitíssimo corredor, rodeado por pilhas de jornais velhos e livros amarelecidos. Cheirava fortemente a pó e a bafio, respirando-se uma atmosfera insalúbre, contaminada.

Nunca, nunca vi tanta tralha junta na minha vida.

É que aquilo era só tralha e tralha e mais tralha, sufocando até à claustrofobia, pois mal dava para uma pessoa se mexer.

Tudo atravancado, a televisão à esquerda, pousada numa estante onde mal cabia, ficando precariamente equilibrada, parecendo que podia a qualquer momento cair para a frente, e a menos de um pé de distância um sofá de dois lugares, às flores, manchadíssimo, por cima do qual a parede estava repleta de fotografias antiquérrimas, condecorações e diplomas e máscaras de índios e sei lá que mais; do lado direito estava a cozinha que se reduzia a uma bancada com lava-loiças num dos cantos da sala, ao lado da qual estava um frigorífico e uma máquina de lavar roupa, sobre a qual estava pousado um fogão tipo camping-gaz. A própria bancada estava cheia de panelas e loiça, pois não havia grandes armários nem gavetas. Em frente, um minúsculo corredor que levava para a casa-de-banho, que foi a primeira divisão que me mostrou: O chão era de betão, o tecto de esferovite enegrecida e completamente carcomida por bolores, e as loiças coladas com grandes montões de silicone, bem, se já viram o Fight Club então imaginem a casa-de-banho da casa do Tyler Durden, mas mais pequena, mais suja, mais nojenta, com piores acabamentos e com um poliban em vez de banheira.

Fazia lembrar uma daquelas casa-de-banho que se montam nos estaleiros de obras para os trabalhadores utilizarem. A maneira prazenteira como ele se referiu a ela como sendo "um pouco modesta" fascinou-me profundamente.

Depois voltámos à sala, onde à esquerda da televisão estava uma porta. Abriu-a e deixou-me entrar. Seria ali o meu quarto. Era um quadrado mais uma vez sem janelas, logo à direita encontrava-se uma cama pequeníssima que ocupava mais de metade do compartimento, sendo o restante espaço atravancado por uma escrivaninha e um guarda-roupa ao qual só se podia abrir uma porta porque a outra tinha a escrivaninha na frente.

Senhorio:olhe esta cama é óptima, é novinha em folha, que o outro rapaz que antes estava aqui uma vez chegou a casa chateado, partiu a cama toda e a partir daí começou a dormir no chão.
Eu:...
Senhorio: Olhe, ainda está ali a assinatura dele - diz-me isto com um sorriso nos lábios.

De facto, na parede ao lado da cabeceira tinha sido escrito com letras garrafais "SVEN" com uma caneta preta de tinta permanente, o nome do anterior locatário.

Eu: ....

Saímos do quarto e mesmo ao lado da porta havia um buraco rectangular na parede, com não mais de um metro de altura, tapado com um cortinado. O velho agachou-se, afastou o cortinado e pediu-me para o seguir, rastejando.

Passei para o outro lado atrás dele e cheguei a um compartimento muito estreito mas comprido, com um tecto inclinado feito de chapa, tão baixo que tive de permanecer de cócoras. À direita estava uma cama pequena e maltrapilha - a cama do homem - e aos pés da cama um computador, a parte de cima do monitor a bater contra o tecto, e um pequeno banco. Só de olhar para aquele recanto conseguia imaginar o velho sentado ao computador, todo encolhido, a cabeça a tocar no tecto, entretidissimo com sabe-se lá o quê...

Senhorio: portanto aqui é onde eu passo a maior parte do meu tempo, por isso não tem de se preocupar que apesar da casa ser pequena eu estou quase sempre aqui e você pode estar à vontade no resto da casa. Mas agora tenho de lhe mostrar o meu terraço, que é a pérola desta casa... impagável!

Começou a rastejar para a esquerda e eu segui-o pelo corredor, ladeado de ambos os lados por caixas tapadas com mantas de onde se ouviam pequenos arrulhares e estalidos. O chão estava todo cagado e cheio de sementes e pevides.

Chegou a uma porta de metal, também ela com um metro de altura e abriu-a. Saímos para o exterior, para o terraço de que ele falava ternamente.

Era um quadrado com uns 2 metros de lado, no topo do prédio, tanto o chão como o parapeito de betão. Havia um fio preso entre a antena de televisão e a chaminé que o velho usava para estender a roupa. O terraço tinha só mais dois objectos: uma daquelas bicicletas de fitness, muito velha e enferrujada, na qual estavam penduradas meias e cuecas a secar; e uma poltrona que parecia tirada da sala de espera de um consultório, completamente encardida e cheia de nódoas.

Senhorio, com um sorriso largo nos lábios: É para aqui que eu venho quando está bom tempo, sento-me aqui nesta poltrona a apanhar sol e a apreciar esta vista... uma coisa... impagável! Dá para ver Lisboa inteira! às vezes até durmo aqui, nas noites mais quentes, no chão. Olhe, até dá para ver a sua universidade, olhe ali!... Se olhar por aquela janela da sua escola, é capaz de me ver aqui, a apanhar sol.

Tentei afastar da cabeça a imagem de um louva-a-deus amarelo esparramado em cuecas.

A vista era de facto abrangente, ainda que revelasse os arredores como prédios completamente em escombros, todos carcomidos, à espera de cair.

Ficou ali um bom bocado, sorridente, a apreciar aquele momento e eu não o quis interromper. Tive o cuidado irracional de não me chegar muito ao parapeito com medo que ele me empurasse.

Depois voltou a entrar pela portinhola de metal e eu segui-o de cócoras. Fechei a porta atrás de mim, aliviado pela visita ter chegado ao fim.

Rastejei atrás do homem e passados 3 passos ele estacou, em vez de continuar até à portinhola que dava de volta para a sala. Estávamos neste momento a passar pela zona do corredor que estava toda cagada e ladeada por caixas cobertas com mantas.

O homem virou-se de lado e levantou uma manta revelando um pequeno sofá que estava debaixo dela. Sentou-se nele, com um longo suspiro de satisfação.

O meu coração acelerou. Ao sentar-se, o velho bloqueava-me por completo a passagem.

E ali estava eu, de cócoras, encurralado, atrás de mim a porta que apenas me poderia levar para o terraço escarpado e à minha frente o velho, com um sorriso maquiavélico nos lábios, não mostrando a mínima intenção de se levantar.

E naquele momento eu soube que ele ia sacar de uma pistola e ameçando-me com ela iria aprisionar-me.

E naquele momento eu soube que ia morrer de uma morte agonizante e horrorosa.

E apercebi-me que não tinha dito a ninguém onde tinha ido.

Nunca me encontrariam.

Não havia qualquer esperança de salvação.

Eu ia morrer nas mãos do velho assassino e estava ali, de cócoras, paralisado.

A minha mãe sempre me tinha dito para não falar com desconhecidos.... E eu sempre lhe tinha dado ouvidos! Como é que me tinha podido deixar levar desta forma?

Nisto, o velho aponta para mim.

Estou completamente aterrorizado por isso demoro a perceber que na verdade ele não está a apontar para mim, mas sim para trás de mim.

Viro-me para trás, a medo, e vejo o cepo morto de uma árvore.

Não percebo o que aquilo significa, será que ele quer decapitar-me?

E então percebo, ele quer que eu use o cepo como um banco, para me sentar. Faço isso e fico a olhar para ele, constrangido.

E então ele diz-me: Sabe o que é?.. Como lhe tinha dito eu aos fins-de-semana gosto de ir para a minha terra... Mas como agora estou sem ninguém cá em casa não posso ir porque depois não fica cá ninguém para tomar conta dos meus pequenitos....

Pega na ponta de uma das mantas que está a tapar uma caixa e levanta-a, revelando uma gigantesca gaiola, onde se podem ver vários pássaros.

Senhorio: O Sven antes é que tratava disso, mas houve um fim-de-semana em que ele não esteve cá e em vez de me avisar não me disse nada! Uma coisa indecente! Foi uma sorte que ainda cheguei a tempo e não morreu nenhum! Não é minhas fofinhas? Oh minhas lindas, minhas fofinhas, dá beijinho felismina, dá beijinho!

Começou a levantar mais e mais mantas revelando uma enorme quantidade de gaiolas cheias de pássaros de todos os tamanhos e feitios.

Senhorio: o problema nem é tanto a comida, porque eles não morrem por 3 dias sem comer, o problema é a água, que eles sujam-na toda muito rapidamente.

Neste momento eu estava completamente embasbacado a olhar para o homem, que começou a reprovar o comportamento do antigo inquilino que deixara os pássaros à morte.

Aproveitou a deixa para me contar toda a história do Sven, mais uma vez de forma extremamente desconexa, dando-me a entender que ele era uma espécie de adolescente deliquente que tinha estado num reformatório e que ele tinha acolhido. Tinham-se chateado por causa dos pássaros e ele há 3 meses que não aparecia em casa, sendo que tinha deixado lá todos os seus pertences.

Ao fim de 3 meses o velho achou que era melhor procurar um novo locatário, porque senão nunca mais voltava à terra dele.

Eu estava boquiaberto e anestesiado. De repente a completa surrealidade de toda a situação afundava-se em mim: o velho, a casa, a história do anterior inquilino que podia aparecer a qualquer momento a reclamar o quarto, e o ar reprovador com que o velho falava sobre ele por não ter alimentado os pássaros.

Mas se pensam que acabou aqui desenganem-se.

Nas duas horas seguintes o velho entreteve-se a apanhar um a um todas as dezenas de pássaros que tinha espalhados pelas várias gaiolas, tirando-os para fora e apresentando-me a cada um deles, fazendo referência aos traços mais marcantes da respectiva personalidade enquanto os beijava, afagava e chamava nomes meigos.

Eu permaneci todo este tempo num estado completamente atónito.

Ao mesmo tempo que passava pela experiência mais entediante da minha vida, apercebia-me que nunca na minha vida poderia ter conseguido imaginar uma coisa tão bizarra e descabida como aquilo que me estava a acontecer e apercebia-me da solidão do velho, de quem chegara a ter medo, mas pelo qual agora nutria uma estranha piedade...
Finalmente acabou por me conduzir à porta e despediu-se calorosamente. Parecia ter ficado com a noção de que eu tinha adorado completamente o sítio e que estava ansioso por me mudar.
Agradeci.

Quando saí de lá doía-me o maxilar de ter ficado tanto tempo de boca aberta.

domingo, 20 de abril de 2008

O Beijo

Estendido ao comprido, no meio da minha náusea vejo uma forma surgir do negrume, aproximando-se rapidamente, aumentando até se despedaçar contra a minha testa, pulverizando-me de uma frescura que é a antítese daquilo que sinto neste momento.

Estou em choque por isso não percebo logo o que é e só consigo fitar o céu negro, carregado e distante, numa tentativa de evitar a tontura que me provoca a cidade à minha volta, que não pára de rodar como um carrossel. Perto de mim, um enorme edifício ergue-se de entre as lajes sujas do pavimento e precipita-se nas alturas. Parece que se debruça sobre mim, lá do alto, vacilante, enquanto toda a realidade que me rodeia se escoa por um ralo invisível que centrifuga tudo na sua passagem.

Começo a sentir a consciência a desvanecer-se pacificamente, os sons a apagarem-se, a sensação de frio a transformar-se num morno torpor e por um momento parece que estou suspenso no vazio e é como se voltasse ao ventre materno. Mas de repente ouço um sibilo e volto a sentir aquele choque frio, que me causa uma súbita vertigem de lucidez. Os sons regressam acutilantes, agressivos. O contínuo zumbir dos automóveis, a cacofonia das buzinas no tráfego congestionado, as sirenes angustiadas pela urgência anónima. E tudo isto parece próximo e distante ao mesmo tempo. Sinto um novo impacto gelado, desta vez na palma da minha mão e um reflexo faz-me fechar os dedos na tentativa de apanhar aquele invasor inoportuno que não me deixa deslizar docilmente para a inconsciência. Esfrego os dedos uns nos outros e sinto uma alteração no senso do tacto, que não consigo identificar de imediato, mas que de súbito me surge como uma epifania. Estão molhados. É agua.

Arregalo os olhos e agito a cabeça, tentando livrar-me do torpor e das cadeias de pensamentos recursivos que desabam dentro de mim, como uma fractal eternamente repetida de ideias que são sempre a mesma ideia, que se transforma num martelar metálico no interior do crânio. E num espasmo vejo uma torrente de estrelas cintilantes precipitando-se do céu na minha direcção e quando elas me atingem é como se fosse trespassado por um milhão de agulhas aguçadas e gemo de dor, mas depois apercebo-me que não dói.

Não é dor, de facto, mas ao mesmo tempo parece que me abre feridas na pele.

Não é dor, é frio.

Começo a ouvir um crepitar à minha volta e surge-me uma palavra na memória que nos insondáveis caminhos do pensamento me traz um significado que torna tudo claro.

É chuva. Apenas chuva.

Que se passa comigo, que já nem reconheço o fustigar de um aguaceiro?

Lentamente, vou ficando ensopado e o violento choque térmico traz-me ainda mais para perto da consciência. Olho em volta. Está escuro. Estou num beco escuro e malcheiroso. Fede a urina e a podridão. Na verdade apercebo-me que estou no meio de sacos do lixo e que o crepitar que me rodeia é causado pelo impacto da chuva no plástico dos sacos. O cheiro é pungente e sinto uma náusea redobrada, uma angústia que me surge das entranhas como se elas se quisessem evadir de dentro de mim.

E vomito.

Vomito para cima de mim próprio e começo a sentir no peito um calor que contrasta com o frio da chuva, mas que depressa desaparece, sobrando apenas um cheiro ácido e uma sensação viscosa.

Olho para o outro lado e vejo um par de olhos amarelos, escondidos na penumbra. É um gato. Está agachado debaixo de um contentor e fita-me fixamente. A chuva lava o chão enegrecido e vejo uma corrente de água escura a ser arrastada para o esgoto. A ela juntam-se vários afluentes e há um deles que me desperta a atenção pois a sua cor contrasta com a dos restantes. É um pequeno riacho de um vermelho-vivo, que ao juntar-se à corrente principal se dissolve no meio da massa escura que jorra pelo dreno, com um borbulhar apaziguante. Sigo com o olhar este rio vermelho em busca da sua fonte e é com surpresa que me apercebo que ele surge debaixo de mim. Há uma enorme poça vermelha debaixo do meu corpo, que se começa a dissolver com a água da chuva e a ser arrastada por ela.

Olho para a minha camisa e vejo-a ensopada de vermelho em toda a zona do ventre e com um sorriso angustiado começo a perceber. Na verdade, agora que recobrei uma boa parte da consciência começo a sentir a agulhada persistente logo abaixo do estômago e uma dor lancinante nas tripas. Levanto a camisa e vejo um buraco transversal a rasgar-me a barriga. Não tem mais de três centímetros de comprimento mas sangra abundantemente.

A náusea regressa. O estado de choque fez-me perder por completo a noção do tempo, fez-me mesmo esquecer durante instantes o comprido cutelo que me trespassou. Não deve ter acontecido há mais de cinco minutos e não fosse o fustigar da chuva eu já estaria agora a dormir o sono eterno.

Mas quis o destino que eu assistisse consciente ao fim da minha vida.

O mundo está prestes a chegar ao fim e no entanto a cidade continua indiferente, sempre zangada, os carros a buzinar, as sirenes a queixarem-se, os transeuntes a apressarem-se.

Eu vou morrer e a única testemunha disso vai ser um gato vadio.

A forma como ele me olha fixamente faz-me sentir que pelo menos ele é solidário para comigo, pelo menos ele não está indiferente. Por um momento interpreto o seu olhar como um mudo apelo à minha coragem e sinto-me agradecido.

E então rio-me com as poucas forças que tenho.

Estupor do gato. Só me olha assim porque tem medo de mim, que o tente atacar.

Não podia haver sentimento mais despropositado neste momento.

O meu riso transforma-se num choro baixinho, agoniado.

O gato tem medo.

Ele nem sabe o que é ter medo.

Medo tenho eu. Sinto-me apavorado. Em pânico.

Pois eu sei neste momento que estou a morrer.

E sei-o com uma clarividência crua, ingente, desesperante.

Vou morrer aqui neste beco escuro.

Fui assassinado.

E então lembro-me dos passos que se afastaram do beco, minutos antes.

Os passos do meu assassino.

E então lembro-me de como tudo aconteceu. Lembro-me de Pandora.

E sinto o peso da tragédia da minha vida abater-se sobre mim.

Pandora é a minha namorada, já desde há dois anos. Não me quero gabar mas neste campo não me safei mesmo nada mal - ela é um espectáculo de miúda: uma loira de vinte e oito anos, alta, inteligente, com um corpo fenomenal, enfim, completamente estonteante.

Conheci-a num bar e a química foi imediata. Sentei-me ao balcão e ela chamou-me logo a atenção. Trocámos olhares e sorrisos durante uns minutos e então ela veio ter comigo para me pedir lume. Acendi-lhe o cigarro, ela puxou uma boa baforada de fumo e expirou lentamente, com sensualidade. Ofereci-lhe uma bebida e começamos numa conversa amena que se prolongou por umas boas horas. Nessa mesma noite, já bem embebidos, estávamos enroscados num quarto de hotel a fornicar que nem coelhos. E como ela era extraordinária na cama! Fizémo-lo três vezes nessa noite e quando chegámos ao fim da última caí para o lado de exaustão.

No dia seguinte quando acordei ela já não estava lá, mas o seu aroma inebriante ainda pairava no ar. Ainda procurei por um bilhete, uma nota escrita à mão, mas ela não tinha deixado nada para lá do seu perfume. Obviamente que para ela tinha sido apenas uma noite de diversão, mas eu… eu fiquei completamente apanhado por aquela mulher e não a ia deixar escapar com aquela facilidade.

Nessa noite voltei ao mesmo bar. Como ela não estava lá sentei-me e esperei, mas ela não apareceu.

Obsessivo, isto não foi o suficiente para me fazer desistir. Passei a ir àquele bar todos os fins-de-semana na esperança de a encontrar e houve um dia em que finalmente a vi. No entanto, nesse dia não pude fazer nada pois ela estava acompanhada por um homem austero, dos seus cinquenta anos, que devia ser o pai dela. Senti-me intimidado e mantive-me no meu canto, mas apesar de tudo senti que tinha sido um bom sinal. Ela voltara ao mesmo bar uma segunda vez, por isso era de esperar que voltasse uma terceira.

Continuei a frequentar o bar assiduamente. Houve noites em que o empregado de balcão me disse que ela já tinha estado lá naquele dia, mas que saíra entretanto. Isto alimentava a minha frustração, ao mesmo tempo que me motivava para não desistir.

Ao fim de algumas semanas a minha paciência foi finalmente recompensada. Encontrei-a lá com duas amigas e não perdi tempo. Aproximei-me, sentei-me ao pé delas e apresentei-me. Ela olhava para mim com um certo embaraço, mas eu atirei umas piadas que desanuviaram o ambiente e em breve sentiu-se novamente à vontade comigo.

Nessa noite levei-a num passeio romântico, junto à margem do rio, comprei-lhe flores e segredei-lhe palavras bonitas ao ouvido.

Inicialmente parecia não estar disposta a um compromisso sério, mas encontro após encontro fui tentando conquistá-la. Levei-a a jantar aos mais finos restaurantes, levei-a ao cinema e a espectáculos, ofereci-lhe prendas e tive com ela longas conversas enquanto olhávamos para o luar.

Como disse no início, sempre houvera uma química entre nós os dois. Ela eventualmente também o percebeu. Tornámo-nos namorados.

Ambos tínhamos uma vida ocupada por isso não nos conseguíamos ver muitas vezes, pelo menos não tantas quanto desejaríamos. Mas sempre que tínhamos hipótese juntávamo-nos, passávamos a noite juntos, jantávamos e ríamos e no final da noite eu trazia-a para o meu apartamento onde fazíamos amor apaixonadamente.

Com o passar dos meses a relação foi-se consolidando, tornando-se mais íntima, e em mim começou a crescer a evidência: Pandora era a mulher da minha vida. Eu amava-a, adorava-a, só queria estar com ela, passava os dias a antecipar os meus encontros com ela, ela era tudo o que eu queria. E pela maneira como as coisas iam, estava certo que ela sentia o mesmo por mim.

Foi assim que ontem à tarde fui à joalharia e comprei um belo anel de noivado, para a pedir em casamento. Hoje passei o dia nervosíssimo, na antecipação de me declarar à minha amada.

Esperei por ela no sítio onde costumávamos encontrar-nos e o tempo parecia nunca mais passar. Trazia comigo o anel no bolso, uma rosa vermelha na mão e muita água-de-colónia no pescoço.

Por fim ela chegou.

Estava linda, linda de morrer.

O seu olhar deixou-me hipnotizado.

O seu andar deixou-me louco.

Os seus lábios.

Os seus cabelos.

Prostrei-me de joelhos ali mesmo, no chão, à sua frente, e tirando o anel do bolso pedi-lhe que se casasse comigo, pois o que eu mais queria neste mundo era viver junto dela, envelhecer junto dela, morrer com ela.

Ela, a paixão da minha vida.

O que se passou a seguir aconteceu muito rápido.

Ela virou-se para trás e com ar horrorizado gritou um nome que me soou familiar.

Levantei-me e percebi o que se passava.

Tratava-se do homem do casaco vermelho.

Ele aqui, outra vez. A arruinar o momento mais belo da minha vida.

Caminhava em passadas largas na nossa direcção, os dentes cerrados, um olhar tresloucado.

No passado, já o vira mais do que uma vez a falar com Pandora.

Não gostava da maneira como ele falava com ela, mas não me quisera intrometer.

Não sabia quem ele era, provavelmente um ex-namorado perseguidor.

Já tinha vindo ter comigo algumas vezes, a ameaçar-me, a dizer que já estava a passar das marcas.

Nunca fui um valentão e por isso nunca o enfrentei, mas não seria ele que me faria desistir da mulher que eu amava.

Agora, chegava um momento fatídico. O homem do casaco vermelho aproximava-se com um ar ameaçador.

Senti que Pandora estava assustada. Senti que tinha de a proteger.

Nunca fui um valentão, mas soube que naquele momento tinha de mostrar a minha fibra. Enchi-me de coragem, cerrei os punhos, entrepus-me entre ele e Pandora e preparei-me para confrontá-lo.

Estendi os braços, tentando fazê-lo parar, mas vindo não sei de onde, recebi um formidável soco no queixo, que me atirou instantaneamente ao chão, onde ainda recebi uma fenomenal carga de pontapés.

Depois, o homem puxou-me pelo colarinho e começou a arrastar-me pelo pavimento. Completamente zonzo das violentíssimas pancadas que tinha recebido não ofereci qualquer resistência.

Fui assim, de arrasto, parar a este beco onde jazo agora.

Quando chegou perto dos contentores do lixo, o homem do casaco vermelho pegou-me pelas abas da camisa e com uma força extraordinária levantou-me no ar.

Olhou-me nos olhos, sondando-me.

E eu soube que nunca poderia fazer nada contra ele.

Ergui as mãos, submisso.

Ele olhou para trás, para a entrada do beco, onde se via a rua deserta.

Olhou em volta e para cima, para as janelas dos prédios circundantes.

E então tirou do cinto uma grande faca aguçada, tapou-me a boca com uma mão e com a outra desferiu um golpe profundíssimo no meu estômago.

Os meus olhos arregalaram-se.

Pude ver a sua boca arreganhada, a fúria contida no seu olhar. Fitou-me durante alguns segundos e torceu a lâmina dentro das minhas entranhas antes de a puxar cá para fora, violentamente.

Com a mão que ainda me tapava a boca começou a empurrar-me para o lado e para baixo, fazendo-me cair no meio de um monte de sacos de lixo.

Neste momento já eu estava em choque, mas ainda me lembro de o ver retirar um pano branco do bolso, com o qual limpou a lâmina da faca e as mãos. Atirou o pano para os meus pés e cuspiu-me para cima com desdém.

Afastou-se com as mesmas passadas rápidas, o som dos seus tacões ecoando pelas paredes do beco.

Agora, moribundo, no limiar da inconsciência, lamento a tragédia da minha vida. Perdi a mulher que amava e nem uma só vez lhe beijei os lábios.

Era tudo o que queria agora. Um simples beijo da minha amada.

Mas ela sempre recusou beijar-me.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Nevou...

Ontem aconteceu um milagre.

Nevou na Rua Conde Redondo.

Pedaços de papel higiénico ensopados.

Uns 8 rolos no total.

Hits:

- Capot: 10 pontos
- Pára-brisas: 25 pontos
- Outra parte do carro: 5 pontos
- Se for um táxi: multiplicam-se as pontuações anteriores por um 1.2
- Se for o mercedes de um putanheiro: multiplicam-se as pontuações por 1.5
- Se o carro parar após o hit: bónus de 25 pontos
- Se o carro parar, o condutor olhar para cima e gritar "vai pá puta da tua mãe filho da puta": bónus de 100 pontos
- Transeuntes: 15 pontos (bónus de 20 pontos para prostitutas e bêbados)

O Hugo ganhou porque foi o único que conseguiu um bónus de 100 pontos.

Ainda agora, umas 10 horas após o singular evento e após a passagem de inúmeros carros, ainda se podem ver vestígios do manto branco que cobriu a rua.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Velhos Tempos

Reparei num pormenor no post anterior que me deixou particularmente nostálgico.

Na primeira foto, no escorredor da loiça, é possível ver 3 pratos com rebordo amarelo.

3.

Lembro-me de ter comprado 4 no jumbo das amoreiras, quando ainda vivia em Campolide... Por 2.50€ cada um...

Na altura da foto já um deles tinha "partido" deste mundo, o que aconteceu obviamente durante a sua estadia na casa maravilha. De facto, lá, a esperança média de vida da louça é muito baixa.

Olhar para esta foto deixa-me arrepiado porque no momento em que vos falo já não sobram senão dois pratos.

Dos 3 que aparecem na foto, um deles já não está entre nós. E impressiona poder vê-lo assim, reluzente, quase que parece que sorri, alheio ao trágico destino que o aguarda.

No momento em que escrevo estas linhas ele encontra-se atrás da cómoda da televisão no quarto do Hugo, onde se espatifou com alarido. E esse sítio será muito provavelmente a sua derradeira tumba.

Estas coisas põe-me a pensar na efemeridade da vida...

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

A Contraprova

Para aqueles que, após os exemplos anteriores, ficaram a achar que ser universitário é sinónimo de viver como um porco, apresento aqui a devida contraprova: a cozinha limpíssima e reluzente. Os créditos desta impressionante limpeza vão para o Hugo, apesar de aparentemente se ter esquecido de enxotar o macaco albino extraterrestre com alopécia que aparece no centro da imagem e que ainda por cima me roubou os chinelos...


Tenho porém de admitir que os resultados não tendem a ser duradouros.

Dois dias depois...





sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Fumo e Espelhos

Era o belo fim de tarde de um plácido dia de Outono quando ele estacou na soleira da porta da casa branca da sua infância e inspirou fundo. Ajeitou o colarinho e olhou de relance para os canteiros, sempre floridos e bem tratados, imutáveis desde que se lembrava, animados pela brisa fresca e suave que embalava o mundo. Mas não se perdeu nas recordações e levantou o punho, batendo três vezes na madeira da porta. Esboçou o seu melhor sorriso e pigarreou, olhou uma última vez para trás, para a rua deserta, de árvores despidas, e aguardou.

“Quem é?”, perguntou uma voz do outro lado da porta, uma voz familiar, trémula, mais velha que o próprio tempo, que o encheu de ternura.

“É o teu filho, minha mãe!”, respondeu ele sorridente, e ouviu a chave a rodar na fechadura com uma perceptível ansiedade e a voz da mãe, do outro lado, transbordante de alegria.

A porta escancarou-se e ela abraçou-o com força, beijou-o nas faces e falou das saudades que tinha, do tempo há que não o via, do frio que fazia na rua, vem para dentro meu filho, ainda te constipas, deixa-me ver-te, estás tão bonito e elegante.

“Olha trouxe-te isto…” disse ele e estendeu-lhe um grande ramo de rosas brancas, ai tão lindas, meu querido, és tão atencioso, espera, deixa-me pô-las num jarro, vem, entra aqui para a cozinha, decerto tens fome, vou-te fazer um lanchinho, que é feito de ti, que tens feito que nunca mais vieste visitar a tua pobre mãe, meu filho, meu anjo, é tão bom ter-te aqui, e mais uma vez abraçou-o cheia de carinho e a comoção trouxe-lhe lágrimas gordas ao canto dos olhos. Ele limpou-as com a ponta dos dedos e fitou o seu rosto ebúrneo, com o seu olhar lânguido e as rugas que se insinuavam nos cantos dos olhos e da boca, e achou-a linda.

“Minha querida mãe… Desculpa… Agora sou um homem ocupado, tenho tido muito trabalho e por isso não tenho tido muito tempo para ti, não se faz, estás aqui tão sozinha…”

“Oh meu filho não te preocupes comigo, conta-me a tua vida, o que fazes, quem és? A solidão não me dói, dói-me mais sentir que já nem conheço o meu próprio filho…”

“Eu sei mãe, eu sei. E é por isso que eu te quero compensar tudo isso, e tudo o que fizeste por mim toda a minha vida. E quero agradecer-te… Olha também te trouxe isto.”

E tirou de um saco que tinha trazido com ele uma caixinha refinada.

“É um chá muito especial importado da China. Sabes que eu não aprecio chá, mas disseram-me que este era uma maravilha. Aproveita e experimenta-o, agora que vamos lanchar”.

“Oh meu filho, és amoroso, obrigada por te teres lembrado…”

Lancharam os dois e ele contou-lhe dos seus negócios, de como se tinha tornado num empresário de sucesso, de como estava a ganhar bem e das viagens fantásticas que fazia regularmente, e dos sítios maravilhosos que já tinha visitado.

Falaram pela noite fora, muito para lá da hora de ir dormir da sua mãe. Eventualmente ele disse-lhe que tinha uma surpresa para ela e contou-lhe que lhe ia oferecer uma viagem a um daqueles sítios com praias de areia branca e coqueiros e água transparente, com tudo pago num hotel de luxo, e sim não te preocupes, eu quero mesmo oferecer-te, tenho dinheiro para tal.

“Mas não é tudo o que tenho para te contar!”, acrescentou. Os olhos da mãe abriram-se de curiosidade, como os de uma criança pequena.

“Mãe… Eu conheci uma rapariga.”

Falou-lhe de como ela era bonita e inteligente, de boas famílias, de como gostava dela e de como estava feliz. E contou-lhe que se iriam casar. Os olhos da sua mãe estavam marejados de lágrimas de alegria.

“Por isso prepara-te minha querida, daqui a uns poucos aninhos deves ser avó!”

E ela chorou de comoção sentido-se feliz como não se sentia há anos.

Fez-lhe ainda muitas perguntas mas eventualmente a sonolência venceu. Disse que se ia deitar. Ele levou-a à cama.

“Já não me posso em pé meu querido… Gostei muito de falar contigo. O teu quarto está todo arrumado e tens a cama feita como sempre… Passo as semanas na esperança que apareças cá!… Estou desejosa que chegue amanhã para contar todas as novidades às minhas amigas… Anda cá meu filho. Amo-te tanto.” – Beijou-o com ternura. – “Fizeste de mim uma mãe muito orgulhosa… Boa noite para ti.”

“Boa noite mãe.” - disse ele fazendo-lhe uma festa nos cabelos grisalhos. Desligou a luz e fechou suavemente a porta do quarto.

Não tinha sono, obviamente. Passeou-se por aquela casa cheia de recordações, fotografias da sua infância e adolescência, do tempo em que o seu pai ainda era vivo, momentos de outrora, instantes de felicidade para sempre aprisionados em molduras, imóveis, a acumular poeira.

Estacou por fim defronte à janela da sala, por onde entrava a luz prateada das estrelas. Estava uma noite fria e silenciosa. Ficou ali uns largos minutos a fitar o vazio até que achou que já passara tempo suficiente.

Voltou à porta do quarto da mãe e abriu-a lentamente. Acendeu a luz.

Ela não acordou.

Jazia de olhos fechados, um sorriso ainda a insinuar-se-lhe nos lábios, estática.

Invulgarmente estática.

Ele aproximou-se dela e pegou-lhe no pulso delicado e tentou ouvir-lhe a respiração.

Nada.

Suspirou.

O veneno do chá surtira efeito.

Retirou do bolso um chaveiro, e remexeu nas chaves até encontrar uma cinzenta, pequena.

Foi em passos lentos até à sala onde tinha deixado a sua pasta de executivo.

Sentou-se no sofá e usou a pequena chave para abrir a pasta. Ficou a olhar absortamente para o seu conteúdo.

“Fizeste de mim uma mãe muito orgulhosa” – pensou.

Era tudo o que ele queria ouvir.

Olhou para as rosas brancas que a mãe tinha posto num grande jarro azul.

Expirou longamente e enfiou na boca o cano do revólver que estava dentro da pasta.

Disparou sem hesitação.

domingo, 13 de janeiro de 2008

The Gathering

sábado, 12 de janeiro de 2008

Reportagem Fotográfica

Muitas foram as palavras que escrevi no post "O Berço da Vida" para descrever a casa onde habito, mas uma imagem vale mil palavras e por isso hoje optei por tirar umas fotos à minha cozinha e marquise para que aqueles que não as conhecem possam ter uma melhor noção.

Este é o estado normal destas duas divisões, enjoy: