Sobre este blog

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segunda-feira, 9 de junho de 2008

Fora-da-Lei

Há uns meses fui expulso da minha casa em Lisboa por ter sido acusado de a assaltar. Este texto sintetiza o que retirei dessa experiência.

Ah esta sensação de infâmia.... Esta doce sensação de infâmia....

Como fiquei viciado nela!....

Os olhares assustados dos outros, dos rectos, mirando-me sob a protecção dos ombros da polícia, simultaneamente curiosos e receosos, então foi ele?, perguntam, em surdina, deixa-me vê-lo, sussurram, e és uma atracção bizarra e são os teus quinze minutos de fama.

Esta deliciosa experiência de me sentir uma ameaça, mesmo quando a única coisa que estou a fazer é apanhar seca de braços cruzados.... Esta exaltação de me sentir perigoso e temido...

Injuriado, mas apenas à distância e protegidos, porque lhes sinto um respeito que só tem um nome: é medo, eles têm medo. Não confiam em mim, vigiam-me cada gesto, estão nervosos com a minha presença espectral, a ideia de ficarem sozinhos comigo fá-los desfalecer.

Um criminoso, nesta casa de bem.

Como o pudemos deixar entrar aqui?

Como pude dormir no quarto ao lado do dele por meses a fio?

Quem diria, viver com um deliquente debaixo do mesmo tecto, mas não, não mais, nem mais uma noite volto a dormir assim!

E assim nos transfiguramos por completo aos olhos destas gentes, ontem inofensivos, hoje monstros diabólicos e sem escrúpulos.

Marginais.

Transfiguramo-nos sem nenhuma razão plausível, racional, sem nenhum facto que o justifique, apenas a mente delirante e histérica dos que foram lesados, que precisam de um alvo, um bode expiatório e sou atacado de acusações.

E grita-me ela que tem toda a legitimidade para desconfiar de mim.

Vez após vez.

E começa a usar cada hesitação no meu discurso, cada pormenor do meu dia de que eu não me lembro bem, cada inflexão na minha voz, para inflacionar a sua suspeita, ao ponto da sua convicção ser tal que eu já começava a achar que só podia mesmo ter sido eu!

Então e o teu colega que esteve aqui hoje de manhã??? Foi ele, tenho a certeza!

O colega em causa é aluno de mestrado em matemática, como tal um completo alienado da realidade. Para ele roubar não tem qualquer desafio pelo simples facto de daí não se poderem retirar tautologias.

Vais falar com o teu colega e eu quero os portáteis aqui, não quero saber de mais nada!

Chegam os polícias e ela acusa-me, um dos guardas leva-me para a cozinha, identifica-me e faz-me esperar uma hora, enquanto os outros dois interrogam a histérica, cuja voz já não posso ouvir a acusar-me, a injuriar-me, difamar-me e caluniar-me, até que a hora passa, aí vêm eles, ouvir a minha versão.

Ou não?

Chega o responsável, o rosto carregado, a enfiar uma luva de cabedal na mão.

Onde é que é o teu quarto, pergunta-me ríspido, e eu indico-o como bom cidadão.

Sentam-me lá, os dois olhando-me de cima, diz-me um, a voz espinhosa, Vou começar já por te dizer que não gosto da tua cara, tens cara de mentiroso, mas aqui já toda a gente te topou... por isso o melhor que tens a fazer é dizer-nos onde é que estão os portáteis porque se não isto vai ser bem pior!

E eu rio-me, meio embasbacado, o que é isto? de onde é que isto veio? Isto são polícias, veêm isto todos os dias, será possível que a outra histérica lhes tenha dado a volta só por me acusar esganiçadamente, sem qualquer prova?

Estás-te a rir, olha que eu não estou a achar piada nenhuma, isto não é uma brincadeira, diz-nos já onde é que estão os portáteis antes que a gente te parta a boca toda! E não vale a pena continuares a tentar encobrir o teu colega, ele já confessou tudo...

E eu fico parvo. Até a história do colega eles compraram. É então assim que funciona a justiça, o primeiro a contar a história é que diz a verdade, ah quem me mandou ser cavalheiro...

Eles nem sequer sabem quem o meu colega é. Nem ainda lhes tinha dado o contacto dele. Mas ele já confessou... Isto as tecnologias modernas são outra coisa.

Continuam a pressionar-me, a acusar-me, a forçar-me a confessar, não vale a penas estares com essas merdas, todos os dias mando para a choça gajos como tu, foste apanhado agora vê se não complicas ainda mais a tua situação.

Já me começo a exaltar mas depois acalmo-me e lembro-me, isto não faz sentido, não vou ceder a este jogo, vou mas é contar aquilo que eu sei.

Saí de casa de manhã, vi a mãe da outra a pôr coisas no frigorífico, cumprimentei-a, fui ao ginásio, voltei passado uma hora, a porta estava entreaberta mas não liguei, pensei que a outra tivesse vindo a casa e que a tivesse deixado assim só para ir buscar qualquer coisa.

Não liguei, não me importei, fui tomar banho, vesti-me, voltei a sair.

Passado umas horas a outra ligou-me, começou-me a contar uma história estranha e eu, na minha boa fé, lembrei-me de ter encontrado a porta aberta...

Imediatamente o tom dela se alterou, agressivo, perguntou por onde é que eu tinha andado naquele dia e eu que já tivera um dia preenchido e estava cansado não me lembrava bem.

Como é possível não te lembrares? Não sabes a que horas acordaste? Não sabes o que fizeste hoje? Olha lá e esteve algum colega teu cá em casa hoje?

Hmmm... não que me lembre não....

Tens a certeza?

Pá acho que não, mas a verdade é que o hoje e o ontem são uma mancha difusa na minha cabeça e eu não me lembrava que tinha visto a mãe dela, que por sua vez tinha visto o meu colega, que tinha só passado lá por casa 5 minutos antes de eu sair, que por sua vez tinha contado a ela que nos tinha visto.

As suas suspeições voam em catadupa, eu digo-lhe para se acalmar, que vou lá ter a casa e vamos tentar esclarecer a situação e ela insiste que tudo o que eu faço e digo e me lembro é muito suspeito e tenta fazer-me contradizer e eu fico nervoso e contradigo-me e ela reforça uma certeza insane e eu vejo-me preso num beco que não sei como fui lá parar....

O seu principal argumento para me incriminar era o facto de eu não ter ficado completamente histérico como ela com o que acontecera.

Acabo de contar isto à polícia e eles gritam-me

MENTIROSO!!!
E o outro vira-se para o primeiro, não, isto não há dúvida, ele está a mentir...

E eu grito-lhes que me metam num polígrafo e eles dizem-me que amanhã passam por aqui de novo e é bom que os portáteis estejam lá...

Isso vai ser um bocado difícil, duvido que quem os roubou tenha intenção de devolver...

Estás a mentir, pensas que nos enganas, merdas como tu já eu estou farto de lidar, vê se pensas bem no que tás a fazer que ainda vais foder a tua vida toda!

E eu rio-me de novo e pergunto qual é o objectivo de toda aquela violência.

Violência? achas que estamos a ser violentos? Alguém te tocou por acaso? Tu não nos queiras ver ser violentos....

Violência verbal também é violência....

E eles riem-se e dizem que me deviam era dar um enxerto ali mesmo.

Pronto, digo eu, não vou continuar neste jogo... A princípio não estava à espera disto, mas vejo que só estão a fazer o vosso trabalho... Estão a ver se eu quebro, se confesso, se me assustam, mas eu não tenho nada para confessar e não vou continuar a exaltar-me com as vossas provocações....

Tu andas é a ver muitos filmes, já foste avisado, amanhã quero os portáteis aqui!

Amanhã vou para o Algarve, digo eu, já tinha isso combinado....

Vais para o Algarve???? Tu já não vais a lado nenhum meu amigo, eu vou agora passar-te uma ordem de restrição e não podes sair de Lisboa até seres interrogado!!!! E virando-se para o outro, olha-me este... tá a ficar nervoso agora quer fugir... Coitado, estes dois já não vão a lado nenhum, nós já temos o número de série, tão tramados, não vale a pena...

Estou muito curioso por saber o que é isso do número de série... Um número que determina a culpa... Há muita coisa que não conheço neste mundo...

Finalmente deixam-me ir e junto-me à maralha exaltada que está no hall, que se cala com a minha chegada, os olhares acusadores, pesados, a outra inquilina chorosa, a irmã da senhoria começa a atacar-me, o cunhado de não sei quem da senhoria a dizer para a irmã da senhoria se calar, a senhoria a dizer-me que o cunhado de não sei quem é advogado, a outra inquilina chorando...

Eu digo que lamento a situação e a irmã da senhoria chama-me ladrão e mentiroso e neste oróburus sem saída fico sem saber o que fazer, ninguém quer esclarecer a situação, ninguém quer analisar os factos, ninguém quer saber o que acho, o que eu vi e o que eu sei, eles já sabem tudo o que precisam de saber e até já sabem o que vão fazer comigo.

Você hoje já não dorme nesta casa.

A outra inquilina tem medo de mim, do ladrão.

Depois devolvemos a renda e a caução, não se preocupe.

Mas hoje você já não dorme cá. E vamos mudar a fechadura.

E eu sinto-me cair numa espiral surreal, rebolar numa bola de neve sem qualquer sentido.

O pasmo é tanto que nem contesto, já não quero perceber, já não quero saber.

Estou aqui há quatro horas a ser espremido e picado quando sou tão vítima como qualquer um de vós, és, és uma grande vítima, foste tu que ficaste sem um portátil de 250 contos!, diz a irmã da senhoria, cala-te!, diz-lhe o advogado, agora sabe-se lá onde é que os escondeu!, cala-te!, gritam a senhoria e o advogado em coro, a outra inquilina chora.

Estou farto. Na altura do primeiro telefonema eu estava a preparar-me para ir jantar. Entretanto passaram-se 4 horas.

Tenho para onde ir, mas passa da meia-noite e fui posto na rua... Podia perfeitamente não ter sítio para ficar...

E digo: Então mas onde é que esperam que eu vá? Expulsam-me da minha casa assim?....

Sua casa? - Diz sarcástica a irmã da senhoria....

Olhe, porque é que não pede albergue ao seu colega que trouxe cá indevidamente hoje de manhã? - diz a senhoria com um sorriso vingativo nos lábios.

Ao trazer estranhos cá comprometeu a segurança da casa, somos forçados a agir assim.... - diz o advogado.

A outra inquilina chora.

Eu vou ensacar umas quantas coisas, entrego as chaves e vou-me embora.

Quero lá saber.

Vou para a minha casa velha, onde fico nos seguintes 4 ou 5 dias.

A casa das larvas, sim.

Um fora-da-lei no exílio.

O rosto vincado pela dureza da vida.

A alma negra de todo o mal que infligiu.

Um coração de pedra.

O olhar sem brilho dos bandidos.

Um foragido.

Perigoso e temido.

Implacável e sem escrúpulos.

Irredutível...

Ah merda....

Esqueci-me de trazer roupa interior....