Sobre este blog

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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O homem que só comia bananas

Uma homenagem que quis fazer mas que não saiu como eu queria. Tinha-a aqui guardada nos rascunhos do blog há imenso tempo e cheguei à conclusão que não fazia diferença nenhuma postá-la, apesar de tudo.


Num sítio muito distante daqui, onde o sol brilha mais e o tempo é indivisível, conheci um homem que amava uma bananeira.

A sua pele era escura e o seu sorriso branco e radiante porque ele tinha tudo o que alguma vez pudera desejar, que era um abrigo para passar a noite, água para matar a sede, e bananas.

Só de bananas pode viver o homem, descobri eu, mas só ao fim de um tempo, porque no princípio não acreditava, desconfiava, achava que ele me estava a querer intrujar com uma história para crianças.

Mas não, não estava.

Dia após dia após dia apenas as bananas eram o seu sustento e mais nada ele metia à boca para mastigar.

As suas tardes eram passadas a contemplar o mar, deitado à sombra da bananeira, o olhar perdido nos limites do horizonte, um ligeiríssimo sorriso a insinuar-se-lhe no canto dos lábios, aquele sorriso permanente e imperceptível daqueles que não sabem o que é estar feliz, apenas o que é ser feliz.

E quando o sol por fim mergulhava no mar, salpicando o céu de matizes, o homem abraçava-se à bananeira com muita força e ternura e fechava os olhos e com todo o carinho deste mundo murmurava-lhe numa voz muito meiga, muito baixinho, que ela era a coisa mais bela que ele alguma vez vira e que tudo o que pedia da vida era poder morrer abraçado a ela.

A árvore às vezes respondia-lhe de mansinho, com um agitar leve das suas grandes folhas, anuindo e reciprocando.

Então, quando o céu se enchia de estrelas, o homem levantava-se e acariciava-lhe a casca dura e macia e com um olhar transbordante de orgulho dizia-lhe: Como estás grande e forte!... Como cresceste e te tornaste imponente!

Começava a dar pequenos passos para trás, para abarcar o corpo enorme da bananeira e perdia-se numa contemplação embevecida.

Finalmente, acabava por virar costas e enfiava-se no seu abrigo de folhas onde dormia até à manhã seguinte.

Todos os dias, muito cedo, ainda o sol mal tinha começado a despontar lá na lonjura, podias ver o homem ajoelhado aos pés da bananeira, murmurando qualquer coisa incompreensível, os olhos cerrados e o rosto muito sério.

Depois levantava-se e trepava pela árvore, com muita ligeireza e toda a delicadeza, um cuidado extremo para não a magoar, e apanhava bananas, que comia, abençoando cada dentada.

No início tudo isto me perturbava muito, porque apesar de agir como aquilo a que qualquer pessoa como eu chamaria de um louco, o olhar deste homem era lúcido, sábio até.

E admitamos, se o único propósito que temos na vida é o de ser felizes, então ninguém neste mundo se poderia considerar mais bem-sucedido que aquele homem.

Que maior e mais importante sabedoria pode haver do que saber ser feliz?

Foi então que chegou um dia em que, não conseguindo conter mais esta curiosidade que já me roía as entranhas, dirigi-me ao homem com toda a humildade de que fui capaz, e perguntei-lhe , sem qualquer sarcasmo, cinismo ou escárnio, movido apenas pela mais pura necessidade de perceber, porque é que ele amava a bananeira daquela forma, porque é que ele só comia bananas e nada mais e como é que ele conseguia sentir-se tão feliz e completo assim.

Esperei que a resposta se coadunasse com o modo de vida do homem: imperscrutável, misteriosa e profundamente intrigante.

Mas não.

A resposta fez-me perceber que não só este homem não era louco, mas também que a lucidez e sabedoria que eu detectara no seu olhar não eram ilusórias. Falou e disse algo que em português seria parecido com isto:

No início eu sentia-me miserável, porque nasci com uma condição terrível, que é a condição de ser um assassino. Para poder viver precisava de comer, e para comer tinha de matar, pois não tinha forma de nutrir o meu corpo que não envolvesse tirar a vida a algum ser.

E como eu a invejava [à bananeira], vivendo, resplandecendo, crescendo cada vez mais alta, cada vez mais robusta, até se tornar mais imponente e majestosa do que qualquer outra coisa viva, e isto - comendo apenas a terra onde se sentava!

Então eu tentei comer terra também, mas fiquei fraco e doente e chorei, por estar condenado a sujar as minhas mãos com o sangue ou a seiva de vida inocente.

E amaldiçoei-me por ter nascido assim, incapaz de viver sem matar.

Ela, por sua vez, não só imaculada de pecado, ainda tinha a generosidade de me proteger do sol quente com a sua sombra e da chuva fustigante com a sua copa folhada.

Com os seus braços abertos para o céu, convidava gentilmente toda a vida a vir-se abraçar a ela, a viver nos seus ramos e por entre as suas raízes.

E esta gentileza teria mesmo com os que a magoassem, os pássaros que a escavassem e os homens que a decepassem, os vermes que lhe roessem as entranhas e a matassem. E mesmo na agonia da morte, nunca a ouvirias gemer, estrebuchar ou contorcer-se. Permaneceria num mudo silêncio e pereceria sem que ninguém disso se apercebesse, como se não quisesse incomodar ninguém com a sua dor.

Na sua sabedoria, inteligência e generosidade infinitas, de noite ela come ar mas de dia come luz e faz ar novo, garantindo que nunca ficará com falta dele. Não só o faz, como não se importa de partilhá-lo connosco, apesar de só sabermos destruir e de nem nos apercebermos de que sem ela não conseguiríamos viver.

Tudo isto ela faz silenciosamente, movida por um altruísmo inigualável, fazendo bem a todos e não fazendo mal a ninguém.

E tão sensata é que vive sem ter consciência de si, evitando assim todas as angústias de quem não sabe o que é mas sabe que é.

Eu, na minha condição miserável, desejei que, já que não faço bem a todos, como ela, pelo menos que não fizesse mal a ninguém.


Um dia, atónito, descobri que na sua imensa bondade, era mais uma vez ela que respondia à minha prece.

Criava, especialmente para mim, estes frutos compridos que amareleciam até cairem a meus pés, convidando-me a prová-los.

E tem vindo sempre a dedicar uma parte da sua energia a fazê-los continuamente, ainda que não lhe sirvam para nada. São feitos com o único propósito de serem comidos. E por isso eu como-os, sem remorso, e rejubilo, por não mais ter de ser um assassino.

E ela continua a fazê-los para que eu os coma sem que eu lhe dê nada em troca, até porque não há nada que eu lhe possa dar que ela verdadeiramente precise.

Ela não precisa de ninguém para viver. No entanto, tudo o que consegue dar aos outros, ela dá, não importa como a tratem.

É o ser mais belo que existe.


E por este motivo o homem amava aquela bananeira mais do que tudo e todas as manhãs lhe agradecia a sua tremenda generosidade antes de se alimentar.

Nunca na minha vida voltei a ver um amor tão verdadeiro como aquele.