Sobre este blog

Este blog publica exclusivamente conteúdo original da minha autoria (ver à direita) e serve o único propósito de garantir a minha imortalidade:

Google caches WebPages regularly and stores them on its massive servers. In fact, by uploading your thoughts and opinions to the internet, you will forever live on in Google's cache, even after you die, in a sort of "Google Afterlife".
- In Is Google God?

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A arte de estar sempre certo

Esta terá particular gosto e é especialmente dedicada para aqueles de entre os meus amigos que têm uma obsessão pela formalização de tudo quanto existe (leia-se, nas entrelinhas, MARCO em letras garrafais, mas também Hugo - um mais fundamentalista que o outro, mas ambos teóricos irremediáveis).

No entanto, recomendo-a vivamente a todos os que sejam como eu.

Se são como eu, já passaram por múltiplas vezes por ocasiões sociais em que se desenrola algum tipo de debate, mais ou menos informal, em que pensaram, com um enorme suspiro, "esta conversa não está a levar a lado nenhum mas infelizmente não há absolutamente nada que eu possa fazer quanto a isso", tipicamente por terem interlocutores de um destes dois tipos (ou pior ainda, dos dois tipos ao mesmo tempo!):

1 - gajo(a) que não pára de dispersar para fora do assunto em debate sem sequer ter a noção de que o está a fazer e que pensa estar a avançar nalguma direcção apesar de se limitar a fazer apenas observações superficiais sobre cada questão até isso o fazer lembrar de uma outra questão completamente diferente mas que ele considera estar intrinsecamente correlacionada com a anterior.

2 - gajo(a) que é pura e simplesmente incapaz de fazer qualquer tipo de concessão "for the sake of argument", que não consegue considerar qualquer possibilidade que não aquela que defende, porque acha que só o facto de considerá-la seria admitir que o seu ponto de vista está errado(a).

Se são como eu, este tipo de comunicação é uma experiência extremamente frustrante, porque não só não conseguem retirar nada dela como não conseguem que o vosso interlocutor perceba como está a ser completamente desorganizado e irracional na sua abordagem - e tipicamente, quando lhe disserem isto na cara, ele (ela, especialmente) vai achar que vocês são uns nerds insuportáveis que não são capazes de simplesmente "conversar".

Por mais irritante que isto possa ser, vocês são, no entanto, pessoas que acreditam que o debate é, à priori, uma experiência com imenso potencial para ser enriquecedora, uma troca de perspectivas em busca de uma verdade maior, mais completa, mais universal - ao contrário dos vossos interlocutores, que acham que debate consiste apenas em defender os seus próprios pontos de vista originais a todo e qualquer custo - de facto, serão tão ferrenhos que na eventualidade de lhes ser demonstrado de forma completamente inequívoca que estão errados, usarão a mais brilhante forma de argumentação que existe: dizer que o outro é, em termos coloquiais, um parvalhão.

Se isto vos parece familiar, também provavelmente saberão que tem um nome: argumento ad hominem - a mais corriqueira das falácias de argumentação que consiste em atacar directamente o interlocutor em vez de atacar o seu argumento.

Aquilo que alguns de vós talvez não saibam é que estas questões dos debates são o tema de estudo de uma disciplina da filosofia que se chama dialéctica.

E que em 1831, o filósofo alemão Artur Schopenhauer escreveu um interessantíssimo tratado sobre o assunto - incisivo, conciso e "to the point" - intitulado "Die Kunst, Recht zu behalten".

Não faço a mínima ideia do que é isso significa porque a única palavra alemã que conheço é shiza (e nem sei se é assim que se escreve), mas o título foi traduzido como "A arte da controvérsia" e também, de forma mais mordaz, como "A arte de estar sempre certo".

Fui simpático o suficiente para vos encontrar uma versão online do livro, está aqui. Agradeçam-me depois (vão-me agradecer se o lerem, é no mínimo BRILHANTE - aliás, se já vos convenci a lê-lo, vão mas é lê-lo, não percam mais tempo a ler isto, o que se segue é só um esforço da minha parte para vos interessar na leitura).

Este texto é uma abordagem extremamente formal ao conceito de debate e começa logo nas primeiras páginas por desmistificar por completo aquilo que ele é: e quanto a isso, meus amigos (aqueles de vós que são como eu) lamento, mas "eles" é que estão certo e nós, completamente errados.

Confundimos dois conceitos que são completamente distintos na sua raiz, como brilhantemente apontado logo nas primeiras páginas do livro.

Pois o debate não é, de todo, pela sua mais intrínseca natureza, uma forma minimamente eficiente (ou sequer eficaz) de chegar à verdade - não está simplesmente construído para isso.

Retirar tautologias é o negócio da lógica, não da dialéctica. Os filósofos gregos achavam que as duas coisas eram uma e a mesma (v. página 5) - e vejam bem onde isso os levou: a uma data de pseudo-verdades, todas perfeitamente plausíveis, todas indemonstráveis e como tal, em última análise, profundamente irrelevantes.

O negócio da dialéctica não é sobre atingir a verdade, mas sim sobre mostrar que o outro está errado (provando assim que estamos certos).

Isto pode fazer com que percam por completo todo o interesse nesta matéria, mas na verdade há algo de verdadeiramente fascinante nela que tem a ver com a natureza absolutamente ASSUSTADORA e perversa de algumas formas de argumentação falaciosas que existem (e que se usam constantemente!).

O mais interessante é que muitas destas falácias nem sequer são usadas de propósito, com o objectivo de manipular (embora sejam usadas com esse objectivo pelos conhecedores da dialéctica, como os políticos). São muitas das vezes erros lógicos dos mais simples que existem mas que, camuflados pelo palavreado, passam completamente despercebidos, mesmo às mentes mais lógicas e racionais.

Tenho uma falácia que é a minha favorita por dois motivos:

1 - é das mais recorrentes em todos os tipos de debate;
2 - é extremamente óbvia, mas isso não impede 1.

Na verdade, cometi essa falácia propositadamente e da forma mais descarada que consegui há poucos parágrafos numa asserção que fiz, e no entanto é provável que poucos de vós tenham dado por ela. Foi na seguinte frase:

"O negócio da dialéctica não é sobre atingir a verdade, mas sim sobre mostrar que o outro está errado (provando assim que estamos certos)."

A pequena frase entre parênteses, que pretensamente decorre directamente da ideia anterior, é uma absoluta enormidade. Quando demonstro que o meu oponente está errado, não fiz nada para demonstrar que eu estou certo.

E mesmo ao provar que uma demonstração dada pelo meu oponente está errada, isso nem sequer prova que a proposição que ele quis demonstrar esteja errada (poderão haver outras demonstrações certas que a provem certa).

No entanto, sempre que um político consegue provar que o seu adversário está errado, ele rejubila. E rejubila não por ter provado que está certo, mas por saber que todo o zé povinho vai pensar que sim!

Este exemplo deve servir para vos fazer ver o quão subtil, traiçoeira e, mais uma vez perdoem-me a coloquialidade, filha da p*t* a dialéctica consegue ser.

É um terreno cheio de armadilhas e precipícios muito bem escondidos, onde é facílimo cair, mesmo quando se anda com a maior atenção a ver onde se põe os pés.

Outras duas falácias que considero dignas de nota, por serem tão óbvias mas estarem impregnadas no discurso de tanta gente, mais do que isso porque me irritam profundamente e ouço-as constantemente, são:

- um contra-exemplo refuta uma asserção. Inexplicavelmente muitas pessoas conseguem usar uma "variação" desta regra no mínimo abismal: "provam" uma asserção baseando-se num único exemplo: "Achas que a criminalidade não está a aumentar??? Então ainda no outro dia me assaltaram o carro mesmo à porta de casa!"

Já não chega o efeito dizimante do erro de indução (induzir a partir de uma amostra irrisória: "Não é verdade que esta geração ande perdida e sem objectivos! Nos «Ídolos» só vês miúdos cheios de determinação e ideais"*) como ainda elevam o seu caso extremo à condição de regra lógica (!!!).

*peço desculpa pelo exemplo tão rebuscado, mas é real e recente e não me apeteceu pensar num melhor.

- a famosíssima: tomar uma implicação lógica por uma equivalência (informalmente, "andar para trás com a implicação", jocosamente, "andar no sentido proibido da implicação"). Aproveito para a usar num exemplo que está na origem dos estereótipos e de muitos fenómenos de discriminação: "Todos os assaltantes aqui da zona são ucranianos. Não posso com ucranianos." (mesmo que todos os assaltantes sejam de facto ucranianos isso não significa que a maior parte dos ucranianos seja assaltante).

"A arte de estar sempre certo" faz uma abordagem a 38 das falácias mais bem emboscadas que existem.

É considerado um livro extremamente perigoso, porque munido desde conhecimento e sabendo como estas falácias são furtivas, tem-se tudo o que é preciso para se ser um monumental manipulador.

Desde já dou um disclaimer: lê-lo poderá provocar um enorme desalento. Pois a partir do momento em que o tiverem lido, sempre que ouvirem uma discussão (ou pior ainda, um debate político), perceberão que invariavelmente não haverá um pingo de lógica, racionalidade ou relevância naquilo que está a ser dito - apenas manipulação, intencional ou não.

Poderão sentir-se tentados depois disto, a achar que saber estas coisas é uma perda de tempo, a não ser que se queira manipular alguém. Mas tenham em mente que não ter noção delas, não estar atento a elas, pode significar estar constantemente a ser manipulado sem saber.

Se quiserem saltar directamente para a parte onde o livro começa a aquecer, sugiro que comecem na página 14.

Se forem como eu, como o Marco, como o Hugo, ficarão certamente deliciados.