Sobre este blog

Este blog publica exclusivamente conteúdo original da minha autoria (ver à direita) e serve o único propósito de garantir a minha imortalidade:

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segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Os de Ontem

A constatação da irreversibilidade da vida não é propriamente um "breakthrough". Na verdade não tem nada de original. É uma ideia velha, um lugar-comum, algo que afecta toda a gente nalguma altura e o problema de ser tão universal é que acaba por ser vista com grande banalidade. Mas houve um dia em que esta constatação surgiu-me quase como uma epifania e a sensação que me transmitiu foi tão forte que quis cristalizá-la. Desse esforço nasceu este texto, não mais do que uma sombra daquilo que verdadeiramente quis exprimir.


Pesa as minhas palavras.

Se te parecem cliché tenta esquecer que o são, porque de facto o são, e tenta lê-las como se nunca tivesses pensado nelas, limpa-te de ideias pré-concebidas, para que possas voltar a assimilar o seu verdadeiro significado.

Não há nada neste mundo que pese mais que a passagem do tempo.

Os amigos e amores de hoje parecem ser a coisa mais importante que tens e alguma vez tiveste.

Tal como pareciam os de ontem.

Mas as voltas da vida levaram-te para longe deles.

Primeiro deixaste de passar o teu tempo com eles.

Depois deixaste de os contactar.

Deixaste de lhes falar.

Deixaste de os ver.

Deixaste de os lembrar.

E nada disto te incomoda, porque não te lembras.

E não magoa, porque é uma transição tão gradual, tão recíproca, que nem te apercebes.

E esqueces.

Aquilo que era tudo.

Aquilo que te preenchia.

Aquilo que amavas. E que te amava.

Esqueces.

Não te irá pesar enquanto não passar muito tempo.

Anos.

Passam anos.

Cresces.

Mudas.

Até que fortuitamente eles voltam a impregnar a tua vida transportados através de uma história vinda de longe, de uma fotografia esquecida, de um sonho, de uma memória antiga.

E aí o peso do tempo afunda-se em ti.

Olhas para o dia solarengo, para o chilreio dos pássaros, para o sorriso das crianças, para o céu limpo e azul e tudo o que vês é uma tristeza atónita, colossal, um assombro de decrepitude, uma saudade inconcretizável, o esmagamento por uma solidão maior que a vida.

Como pudeste esquecer-te, perguntas-te.

A nostalgia preenche-te de uma dormência constritiva, de uma vertigem de lucidez que é a angústia da existência.

A angústia de saberes que nada do que fazes faz sentido.

Nada do que tens.

Nada do que amas.

Nada do que julgas certo ou errado.

A tua vida não tem significado ou propósito.

As pessoas que eram as mais importantes não fazem agora parte da tua vida e tu nem te apercebeste de como isso aconteceu.

Agora, há outras que as substituem. Outras com quem podes contar. Outras com quem convives, ris e confidencias. Outras que amas e que te amam.

Contudo, a lembrança dos de ontem, que ainda te percorre, faz-te perceber que o que sentes por todas elas e o que elas sentem por ti é completamente artificial. Amigos e amor são algo que precisas para te sentir completo e feliz, no entanto, as pessoas em que concretizas a tua amizade e o teu amor, essas, são inextrincavelmente aleatórias. Tu usa-las como invólucro para esses sentimentos do mesmo modo que elas te usam a ti.

Aquilo de que precisas verdadeiramente não é delas, mas dos sentimentos que elas te despertam. E és viciado neles. Não consegues de todo viver sem eles.

Quando as pessoas onde os guardaste morrem, ou quando és separado delas pelas circunstâncias, pensas ter perdido tudo o que tinhas. Mas o tempo ensina-te que apenas perdeste recipientes, o conteúdo nunca te abandonou. Só precisas de novos recipientes para encher com o mesmo conteúdo.

Porque tu não amas aqueles que amas, o que amas é o amor que sentes.

És uma criatura ridícula, profundamente ignorante, que vai morrer inevitavelmente. Contudo o que é mais ridículo em ti é não seres capaz de viver sem outros como tu, outros a que tens de agradar para que te agradem a ti.

Toda a tua vida se regula em função deles.

É por eles que te esmeras.

É por eles que te aperfeiçoas.

É por eles que te esforças.

É pela sua aceitação. Pela sua aprovação.

Mas no fundo não é por eles. É por aquilo que precisas que eles te dêem.

Tudo porque não consegues libertar-te desses sentimentos que nem sabes explicar.

E hoje lembraste-te dos de ontem e com eles esqueceste-te dos de hoje, porque o amor que mais te sacia é o amor novo, que vem acompanhado de paixão. Amas os de hoje, mas não lhes sentes paixão, porque já não são novos.

Os de ontem, por seu lado, estavam esquecidos, e ressurgidos desta forma aparecem-te como novos.

A tristeza amorfiza e no seu lugar começa a surgir um inconformismo obstinado, uma necessidade de recuperar o para sempre perdido, de remendar o irreparável, de ignorar o irreversível.

Procuras loucamente pelo seu paradeiro entre amigos de amigos, amigos de conhecidos, conhecidos de amigos. Move-te um sentimento que te transcende, enches-te de um rejúbilo que é a perspectiva de reviveres todos aqueles momentos maravilhosos que entretanto renasceram na tua memória.

Momentos que, ironicamente, não valorizaste de todo quando os viveste, tal como não valorizas os que vives agora mas que hás-de saudar um dia da mesma exacta forma.

Por fim encontra-los.

Os de ontem.

Os que eram tudo para ti.

Os que esqueceste.

E em vez da felicidade que esperavas alcançar ao tê-los de novo contigo, o que encontras é uma ainda mais amarga desolação que é a definitiva evidência de que aquilo que tanto saudavas não eram eles, mas sim memórias de momentos para sempre enclausurados no contínuo fluir do tempo, momentos que nunca poderás recuperar. Momentos em que eles te deram a amizade e o amor dos quais precisas tanto como do ar que respiras.

Olha-los nos olhos sondando-lhes a alma, incrédulo. Sentes que algures lá dentro tem ainda de estar uma chama, um resquício daquilo que partilharam, que sabes que era especial.

Em desespero, tentas reavivar essa chama, porque não consegues ver o que mudou. Tu queres que tudo volte a ser como era e vês nos olhos deles que eles também querem, mas então se assim é, porque é que já não é a mesma coisa?

Olha-los e vês os sinais que o tempo lhes deixou. Estão diferentes. Podem ser jovens, mas estão mais velhos. Quando olhas com mais atenção começas a ver.

Eles mudaram.

Ao assimilar esta conclusão reparas que o seu olhar reflecte-se no teu, como num espelho.

E percebes tudo com um sorriso profundamente angustiado.

Tu mudaste.

A Última Hora


Este texto estava a apanhar pó numa qualquer subpasta d'"Os meus documentos". É datado de Agosto de 2004, tinha eu dezassete tenros anos, e é um ensaio sobre as ultimas reflexões de um condenado à morte. Em retrospectiva diria que está um pouco óbvio de mais, hoje optaria por uma abordagem mais subtil. Por outro lado acho que o estilo de escrita está interessante, notando-se uma clara influência das leituras de C. Palahniuck.

A vingança é o ódio que nasce nas vítimas do ódio. Como o amor, o ódio é cego, e da mesma maneira que pelo amor se morre, pelo ódio se mata.

O meu nome é uma incógnita. Para ti, não sou mais do que um rosto anónimo que vês passar na rua. Tenho uma história para contar que é a história da minha vida. Não esperei vir a contá-la tão cedo. Pensei que a iria contar na minha velhice, sentado numa cadeira de balouço, ao pé do crepitar acolhedor de uma lareira acesa, com um neto de três anos ao colo, enquanto mordiscaria a ponta gasta de um cachimbo de madeira, aproveitando aqueles deliciosos momentos de fim de tarde, crepúsculo do dia, crepúsculo da minha vida...

Infelizmente, não vou poder gozar esses momentos, porque a minha história já acabou.

Estou sentado no chão sujo de uma cela apertada. Há um cheiro pestilento a pairar no ar... A náusea é uma constante. Já me habituei. Nunca me habituei foi a este silêncio gritante. Dizem-me que estou aqui há seis anos. Eu não sei, não refuto nem corroboro, pois há muito que perdi a noção do tempo.

O guarda disse-me que hoje tinha chegado a minha vez. Finalmente.

Não sei há quantas horas me disse isso. Sei que vai acontecer às seis da tarde, mas isso não tem grande relevância para mim... Podem faltar cinco minutos. Podem faltar duas horas... Pelos menos sei que é hoje. No interior da minha cela, sem janelas, luminosidade débil, ambiente decadente, não sei se é tarde, não sei se é manhã, não sei se é noite. O tecto goteja em cadência... As infiltrações duram há tanto tempo que já se denotam pequenas estalactites de calcário e o chão está carcomido por uma espécie de bolor verde.

O meu nome é uma incógnita e hoje vou morrer.

Durante muito tempo temi a chegada deste dia. Tinha medo da treva, do negrume, do silêncio, da solidão. Da morte. Eu não queria morrer. Eu queria uma oportunidade... Ninguém ma deu. Agora já estou morto. O meu corpo sobrevive, a minha mente divaga, mas o meu espírito abandonou-me há muito.

Não consigo deixar de sentir um certo nervosismo. A minha garganta é cortiça, o meu estômago é ácido. Dentro de pouco, muito pouco, uma agulha vai-me penetrar a pele... Vou sentir um ardor corromper-me as veias, uma tontura, uma derradeira náusea e depois acabou-se. O oblívio. Perder-me-ei no esquecimento.

Será justo? Dantes interrogava-me sobre a justiça. Será que o mereci? Isso não me importa... Na realidade, é um alívio saber que este momento chegou. De qualquer forma, a pergunta nunca teve uma lógica inerente. Que interessa se mereci? O que é facto é que não vai resolver nada. A minha morte não vai acalmar as almas dos que trucidei. A minha morte não vai salvar ninguém. Não vai ajudar ninguém.

Às vezes pergunto-me se estou arrependido daquilo que fiz. Penso para mim próprio: se me fossem dadas as mesmas condições, voltaria a optar da mesma forma? Não sei. Haveria alguma forma melhor? Nenhuma alternativa me deixaria bem comigo próprio. Quando o fiz pensei que iria encontrar paz. Mas não. Só encontrei desolação.

Uma injecção de cianeto de hidrogénio e depois a morte.

O guarda disse que o padre viria dar-me a extrema unção. Aproveitei a ocasião para lhe dizer que se Deus existe é um merdas. Disse que o padre faria melhor em continuar os seus sagrados deveres de violação de criancinhas inocentes... Eu deixei de acreditar no Supremo Arquitecto há muito tempo. Se aquilo que está escrito tem uma ponta de verdade, então eu estou condenado ao inferno até ao fim dos meus dias. Nem que viesse o Santíssimo Papa perdoar-me todos os pecados eu me safaria.

Não tenho grandes informações sobre o que se passa no exterior, mas sei que as pessoas me odeiam. Para elas sou um assassino em série, um psicopata animalesco que devia ter ido parar à cadeira eléctrica.

Não vejo o céu há tanto tempo que não me consigo lembrar da sua cor.

Para o mundo eu sou a personificação do mal. Sou um doente intratável. Sou maléfico por natureza.

O meu aspecto não ajuda muito desde que fui espancado pelo grupo dominante desta jaula de gorilas. Deixaram-me a cara totalmente desfigurada. Levei cento e dezassete pontos e as hemorragias demoraram dias a estancar. Actualmente, se olhares para mim, não saberás distinguir qual dos inchaços da minha cara é o meu nariz.

Até os outros prisioneiros me odeiam. É por isso que estou na solitária há tanto tempo. Os guardas não se importaram muito com aquilo que os outros me faziam até terem de me isolar com medo que me matassem.

Os guardas não gostam que os prisioneiros morram nos seus domínios. Traz-lhes problemas.

Quando entrei na cela em que estou, nunca imaginei que iria passar tanto tempo aqui dentro. Não fui autorizado a assistir ao meu próprio julgamento, porque na audiência preliminar insultei o juiz. Não sei qual foi o problema deles. Ele era realmente um javali nojento... Bem, claro que não devia ter chamado a mãe dele à conversa, mas uma pessoa não controla todos os seus impulsos, não é?

Fui expulso por desrespeito ao tribunal.

O meu processo arrastou-se durante anos e anos. Os meus pais são ricos, ou pelo menos eram, antes disto tudo ter acontecido, e puderam pagar os melhores advogados na minha defesa.

A culpa não foi dos cães dos advogados. Eu condenei-me à morte. A sentença foi ditada há cerca de dois anos, e hoje chegou o grande dia.

Gostava de saber que dia é hoje, já que é provavelmente o dia mais importante da minha vida. Também gostava de saber ao certo qual é a minha idade, que calculo em cerca de vinte e quatro anos.

Quando me olho ao espelho não me reconheço. Transformei-me num destroço esfarrapado da pessoa que uma vez fui.

Não consigo deixar de pensar na minha mãe e na forma como a desiludi. Os meus fantasmas perseguem-me e trucidam-me, recordando-me a todo o momento o amargo destino que tracei para mim próprio.

Os guardas não se importam com nada. São abutres. Uma vez, no balneário, dois gorilas seguraram-me e o chefe do bando corrompeu todo o respeito que eu tinha por mim, num momento que pareceu uma eternidade, em que violou o meu corpo, a minha mente, destruiu a minha dignidade, reduziu-me a esterco consciente da sua existência, humilhou-me tão profundamente que não consegui enfrentar a minha própria imagem durante muito tempo.

Este mundo é podridão. Quando não o conheces, parece um lugar maravilhoso, mas quanto maior se vai tornando a tua consciência sobre os seus limites, maior se torna o teu nojo inerente a tudo o que existe. Ou talvez não. Talvez este mundo seja mesmo o lugar mágico e encantado com o qual sonhei em criança. Talvez tenham sido apenas as minhas acções e decisões que me deram esta percepção da realidade.

De qualquer forma, há muito que a minha percepção deixou de ter qualquer interesse. A minha mente foi tão dilacerada que tudo o que me circunda se tornou completamente surreal.

Tenho consciência disto porque acredito em lógica e num mundo lógico, coisa que o meu deixou de ser por completo.

Um injecção letal, com uma agulha esterilizada. Deram um último cigarro a um homem que ia ser enforcado. Ele respondeu: “Não obrigado. O tabaco faz mal à saúde”.

Dormência

Ou "Delírio". Ou "Demência". Ou "Psicotrópicos".

Dex olhou para baixo e a vertigem fê-lo vacilar. Um relâmpago iluminou o céu nocturno, ao longe, e o ribombar do trovão chegou pouco depois, abafado pelo estrépito contínuo da chuva torrencial. Olhou para baixo e viu o vazio a abrir-se diante dele, o nada a chamá-lo para a consolação do infinito. E lá ao fundo, muito em baixo, apenas um prado de luzes cintilantes, bruxuleando de forma surreal.

Abriu os braços e deu mais um passo em direcção à berma. Outro relâmpago estalou sem aviso, muito mais perto que o anterior e o estrondo fez com que desse um salto que quase o atirou para o oblívio. Mas recompôs-se e riu alto, loucamente, despropositadamente. Riu-se e gritou e desafiou a tempestade a lavá-lo daquela dormência que o assolava, que estava impregnada na sua vida e na de toda a gente. E quando o vento lhe respondeu com brutalidade, chicoteando-o sem piedade e vergando perigosamente a estrutura de metal onde ele estava apoiado, Dex quase vomitou as tripas, mas riu-se perdidamente, extasiado com a evidência de estar vivo.

Ergueu o olhar para abarcar a cidade que o rodeava a perder de vista, as formas cinzentas dos edifícios esbatendo-se contra o fundo negro da noite e as luzes, centenas, milhares de luzes, cintilando a seus pés e até ao horizonte distante.

Na sua indiferença e eterna frieza, a metrópole era lavada de uma sujidade inextinguível, purificada pelas vergastadas da chuva implacável e assim animada duma beleza intangível, odorífera, que o envolvia numa embriaguez eufórica, da qual não se queria libertar. Um terceiro relâmpago rasgou o céu e as fachadas iluminaram-se de cores de prata, os prédios escarpados projectando sombras negras nas ruas e nos becos escondidos. As gotas reluzentes da chuva pareceram parar no ar durante um instante dilatado em que o clarão iluminou tudo e Dex susteve a respiração, tentando congelar aquele momento na eternidade. Mas então o clarão desapareceu e os alicerces do mundo tremeram perante a formidável explosão sonora da trovoada. Dex não conseguiu suportar a ideia de deixar escapar a magia daquela tempestade e sentiu uma urgência enorme de se juntar a ela. Sem pensar, flectiu as pernas e atirou-se de cabeça para o abismo, gritando de alegria.

Do Outro Lado do Espelho

Bem-vindos ao meu pesadelo. O crepúsculo alonga as sombras até ao infinito, onde os meus sonhos vivem. O ar está tão pesado e tão denso que me sinto encurvar sob o seu peso inexpugnável. A bruma envolve tudo numa atmosfera inefável, etérea, irreal. As árvores morrem, desvanecem-se no negrume, a luz moribunda desfaz-se ao penetrar nas suas copas folhadas, parte-se em mil feixes, fragmenta-se inextrincavelmente como a imagem que vejo quando mergulho nos olhos desse que me encara do outro lado do espelho. Olhos, diz-se, são o espelho da alma. O meu espelho está irremediavelmente partido.

Se o pudesses ver, dirias que caiu ao chão, por acidente, talvez, e que se partiu em mil bocados, que se espalharam pelo chão, fragmentos cintilantes de um todo complexo e nunca completamente compreendido, agora perdido. Dir-se-ia que alguém o tentou salvar, então, recolhendo cada pedacinho, pois a verdade deve ser dita, não há um pedaço que lhe falte, e, com a paciência de quem só lhe resta a morte, se pôs a colá-los, um a um, tentando inverter os insondáveis caminhos da entropia.

Mas a verdade é bem diferente. Ainda que se tenha realmente partido por descuido, tal não ocorreu dessa forma, num momento era uno e todo, noutro um monte de detritos. Não. Tudo começou com uma única racha, perto do bordo, desprezável e desprezível. Uma racha que cresceu e que se ramificou. E quando me apercebi da sua ameaça latente, já era demasiado tarde.

Percebi então que discretamente, silenciosamente, ela o tinha consumido até às entranhas, envenenado a sua essência até ao fulcro. Aquela racha era apenas a parte visível desse universo cacofónico e amorfo que se tinha instalado longe da minha vista, nas profundezas do meu ser. E agora, quando tudo desabava, à medida que os últimos elos que mantinham a coesão se desagregavam, atormentados por tortuosas correntes de caótica destruição, eu via então, enfim, estupidamente impotente, o espelho a fragmentar-se, as rachas a espalharem-se, a ramificarem-se, a rasgarem aquela superfície lúcida, que rangia, num esforço vão, que quebrava, com um tínido agudo e acutilante, que cedia face à pressão insuportável das forças que a corrompiam, lentamente, de uma forma agonizante, como um homem que se afoga, lutando pela sua vida.

E eu apenas podia olhar, enquanto o meu espelho se desfazia. Pensei que as rachas se continuariam a dividir infinitamente, qual fractal, eventualmente reduzindo-o a pó. Mas a sua demanda destruidora acabou por parar, e neste estado ele ficou, frágil, incrivelmente frágil, como que esperando qualquer pretexto, por mais pequeno que fosse, mesmo um sopro talvez, para concluir a sua ruína, para desabar no caos absoluto, finalmente.

Perplexo, fiquei a olhar longamente para as fendas que o rasgavam, que o dilaceravam, desfigurando a sua face límpida e pura, outrora lisa, agora profundamente irregular, cada um dos fragmentos ainda reflectindo o mundo, teimosamente, como se nada tivesse sucedido, como se pensassem que desprezando a inevitabilidade do que acontecera, poderiam diminuí-la ou mesmo apagá-la. Mas a verdade é que já não havia harmonia.

Cada pedaço do espelho apontava numa direcção diferente, reflectia uma parte diferente da realidade, como um exército dispersando atabalhoadamente, após a perda do seu general, cada um para seu lado, sem ordem nem rumo. Só me apercebi, no entanto, da verdadeira dimensão deste facto, quando, deixando de olhar para os pormenores de cada fragmento, me afastei e olhei para a imagem que se formava do lado de lá.

O que vi deixou-me mudo.

A própria realidade partia-se ao entrar no espelho e, para sempre aprisionada nos seus labirintos, consumia-se e corroía-se. E quando fitei o rosto que se escondia para lá da teia quebradiça do vidro polido, apenas pude conter um grito de pavor sufocante, assombrado por uma visão que me viria a atormentar para o resto da eternidade, daquilo que existe dentro de mim, daquilo que apodrece nas vísceras da minha mente.

Uma cara cadavérica, diabolicamente distorcida, profundamente truncada, como se tivesse sido talhada com um cinzel. E bem no fundo das suas órbitas encovadas, um par de olhos cruéis espreitavam, negros e vazios, fitando-me fixamente, tenebrosamente. Quis fugir. Quis correr. Quis fechar os olhos e acreditar que se voltasse a abri-los acordaria e tudo estaria bem outra vez.

Mas não conseguia, estava paralisado, não conseguia mexer-me, não conseguia desviar o olhar daqueles olhos terríveis que me fulminavam, que me penetravam a alma, sondando violentamente as profundezas do meu espírito, queimando tudo na sua passagem. E o som, o som desesperado dos gritos aterrorizados ecoando dentro do meu crânio, como se aquela sonda cortante trouxesse à superfície todas as más recordações que jaziam nos recônditos do meu inconsciente.

Em breve, senti-me desfalecer. O negrume apoderava-se de tudo à minha volta enquanto o meu corpo era arrastado por uma força inexpugnável, em direcção àqueles olhos horripilantes. Quis resistir, quis lutar, mas era impossível, as vozes dentro da minha cabeça não paravam, gritavam cada vez mais e mais alto, num terror indescritível, alucinante. Os olhos do outro lado do espelho pareceram inflar, absorvendo toda a realidade, enquanto eu era arrastado por uma força esmagadora na sua direcção, como se o vácuo daquele olhar me estivesse a puxar para o seu interior, empurrando-me contra o espelho estilhaçado.

Por fim, no limiar da inconsciência o meu corpo cedeu. Como que acelerado pela gravidade esmaguei-me brutalmente contra o vidro que colapsou quase instantaneamente, explodindo em milhares de estrelas de cristal cintilante. Perfurei a superfície e rodopiando lentamente caí no negrume infinito. Antes de perder os sentidos, apercebi-me que tinha entrado noutro mundo, noutra dimensão, noutra realidade. Eu estava do outro lado do espelho. E com uma lucidez incrível, inexplicável, sabia-o, sem saber como: não havia caminho de volta.

Ocaso

Nas malhas insondáveis da memória vive um monstro sem rosto e sem nome.

Uma estação de comboio.

É velha e feia e suja e tem as lágrimas e a tristeza das partidas cravadas nas lajes gastas do chão. O carril perde-se na planura inóspita e ao fundo, ainda longe, surge a silhueta grosseira de uma locomotiva.

Silêncio.

O vento arrasta as folhas pelo cais deserto e alvoroça a erva num prado distante. O céu está escuro. O relógio da estação marca cinco horas e nove minutos no crepúsculo fustigante de Inverno.

Os carris guincham, doridos, à medida que a máquina se aproxima com um estrépito rápido, rítmico, monótono, fatigante. O comboio abranda com um assobio estridente e detém-se, suspirando de cansaço, e de novo, o silêncio.

Um homem alto com um chapéu preto.

Desce os degraus para fora da carruagem e pousando uma grande mala de cabedal no cais, perde o olhar na solidão da paisagem, num momento que se alonga pelo horizonte que a vista abarca, até ser interrompido pelo apelo angustiado do assobio do comboio, que retoma custosamente a marcha com um martelar metálico e indelicado que fere a quietude da planície mas que rapidamente se dispersa na lonjura.

E de novo um silêncio pacífico, melancólico, banhado por uma brisa suave, quase inaudível, que transporta a apatia do mundo. O homem tira o chapéu preto da cabeça e é esmagado por uma tristeza que lhe surge nas entranhas, que o transborda e que se escoa por entre as lajes cinzentas do cais deserto.

Sobre a compulsão de escrever

Veio-me à cabeça uma ideia de Scott Adams, o criador da banda desenhada Dilbert; a de que no futuro não vão haver pessoas com a profissão de jornalista, porque, porquê pagar a alguém para nos contar coisas quando todas as pessoas à nossa volta estão sempre a querer contar coisas, mesmo quando ninguém lhes pergunta nada?

O ser humano tem uma compulsão para falar. Gosta muito mais de falar do que de ouvir. Desta forma, no futuro, graças à internet, não serão necessários jornalistas; as pessoas que presenciarem as notícias em primeira mão vêm a correr postá-las na net, para todo o mundo saber.

A ideia está melhor desenvolvida no livro "O Futuro Segundo Dilbert", não tenho paciência para a expor melhor.

Porquê a última pergunta?

A última pergunta é um dos meus contos favoritos e pertence à antologia de contos de Isaac Asimov, "Nine Tomorrows".

Proponho a todos os que não o conheçam a sua leitura, aqui (está em inglês).

Acerca da expressão anhoco e anhar, utilizadas no post anterior

É interessante notar que ao começar a escrever este post, já me surgiu ideia para mais um.

Isto de deixar jorrar a diarreia cerebral tem o seu quê de viciante.

Talvez comece a perceber o porquê de ter um blog, mesmo quando não se tem nada para dizer (como é o meu caso).

Estive a ver na wikipedia e não há qualquer referência a esse tão relevante verbo, "anhar", que utilizei no post anterior.

Como presumo que nem todos estão familiarizados com o conceito, venho aqui tentar propor uma definição:

anhar - acto de quem anha; preencher o quotidiano com ocupações frívolas e inúteis geralmente como maneira subliminar de contornar as obrigações;

donde deriva imediatamente:

anhoco - pessoa que anha muito.

Não posso dizer que perdi muito tempo a pensar nestas definições, até porque este é um blog de diarreia cerebral, não vou pensar muito em nada do que escrevo. Como tal, proponho aos que não a acharem uma boa definição que sugiram outra melhor.

Inauguração

O meu amigo e colega Marco Robalo é um dos maiores anhocos de sempre e a sua teoria é que a melhor maneira de anhar é postar num blog.

Ele já criou e manteve uma larga quantidade de blogs, todos eles dedicados à enorme diarreia cerebral que lhe corre a jorros pela cabeça. Alguns deles chegam até a ter referências à sua diarreia intestinal.

Acontece que também eu sou um anhoco, principalmente quando tenho coisas importantes para fazer, como estudar para o exame de electromagnetismo da próxima quarta-feira. Como tal, resolvi, à imagem do meu amigo e colega, criar este blog.

É o meu primeiro blog e este é o meu primeiro post.

Uma coisa que acho estranha nisto dos blogues é o facto de estar a escrever como se estivesse a falar para alguém, quando sei que no fundo o propósito do blog é apenas falar comigo próprio, mas com toda a gente a ouvir.

Parece-me que há um qualquer fetichismo exibicionista no conceito.

Bem, mais uma vez à imagem do Marco, não tenciono que os meus posts tenham qualquer significado e que deixem as pessoas num estado de reflexão. Como tal, vou dar esta inauguração por encerrada sem mais delongas, até porque acabou de me surgir uma ideia para um segundo post.

Até já.