Sobre este blog

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segunda-feira, 10 de setembro de 2007

A Última Hora


Este texto estava a apanhar pó numa qualquer subpasta d'"Os meus documentos". É datado de Agosto de 2004, tinha eu dezassete tenros anos, e é um ensaio sobre as ultimas reflexões de um condenado à morte. Em retrospectiva diria que está um pouco óbvio de mais, hoje optaria por uma abordagem mais subtil. Por outro lado acho que o estilo de escrita está interessante, notando-se uma clara influência das leituras de C. Palahniuck.

A vingança é o ódio que nasce nas vítimas do ódio. Como o amor, o ódio é cego, e da mesma maneira que pelo amor se morre, pelo ódio se mata.

O meu nome é uma incógnita. Para ti, não sou mais do que um rosto anónimo que vês passar na rua. Tenho uma história para contar que é a história da minha vida. Não esperei vir a contá-la tão cedo. Pensei que a iria contar na minha velhice, sentado numa cadeira de balouço, ao pé do crepitar acolhedor de uma lareira acesa, com um neto de três anos ao colo, enquanto mordiscaria a ponta gasta de um cachimbo de madeira, aproveitando aqueles deliciosos momentos de fim de tarde, crepúsculo do dia, crepúsculo da minha vida...

Infelizmente, não vou poder gozar esses momentos, porque a minha história já acabou.

Estou sentado no chão sujo de uma cela apertada. Há um cheiro pestilento a pairar no ar... A náusea é uma constante. Já me habituei. Nunca me habituei foi a este silêncio gritante. Dizem-me que estou aqui há seis anos. Eu não sei, não refuto nem corroboro, pois há muito que perdi a noção do tempo.

O guarda disse-me que hoje tinha chegado a minha vez. Finalmente.

Não sei há quantas horas me disse isso. Sei que vai acontecer às seis da tarde, mas isso não tem grande relevância para mim... Podem faltar cinco minutos. Podem faltar duas horas... Pelos menos sei que é hoje. No interior da minha cela, sem janelas, luminosidade débil, ambiente decadente, não sei se é tarde, não sei se é manhã, não sei se é noite. O tecto goteja em cadência... As infiltrações duram há tanto tempo que já se denotam pequenas estalactites de calcário e o chão está carcomido por uma espécie de bolor verde.

O meu nome é uma incógnita e hoje vou morrer.

Durante muito tempo temi a chegada deste dia. Tinha medo da treva, do negrume, do silêncio, da solidão. Da morte. Eu não queria morrer. Eu queria uma oportunidade... Ninguém ma deu. Agora já estou morto. O meu corpo sobrevive, a minha mente divaga, mas o meu espírito abandonou-me há muito.

Não consigo deixar de sentir um certo nervosismo. A minha garganta é cortiça, o meu estômago é ácido. Dentro de pouco, muito pouco, uma agulha vai-me penetrar a pele... Vou sentir um ardor corromper-me as veias, uma tontura, uma derradeira náusea e depois acabou-se. O oblívio. Perder-me-ei no esquecimento.

Será justo? Dantes interrogava-me sobre a justiça. Será que o mereci? Isso não me importa... Na realidade, é um alívio saber que este momento chegou. De qualquer forma, a pergunta nunca teve uma lógica inerente. Que interessa se mereci? O que é facto é que não vai resolver nada. A minha morte não vai acalmar as almas dos que trucidei. A minha morte não vai salvar ninguém. Não vai ajudar ninguém.

Às vezes pergunto-me se estou arrependido daquilo que fiz. Penso para mim próprio: se me fossem dadas as mesmas condições, voltaria a optar da mesma forma? Não sei. Haveria alguma forma melhor? Nenhuma alternativa me deixaria bem comigo próprio. Quando o fiz pensei que iria encontrar paz. Mas não. Só encontrei desolação.

Uma injecção de cianeto de hidrogénio e depois a morte.

O guarda disse que o padre viria dar-me a extrema unção. Aproveitei a ocasião para lhe dizer que se Deus existe é um merdas. Disse que o padre faria melhor em continuar os seus sagrados deveres de violação de criancinhas inocentes... Eu deixei de acreditar no Supremo Arquitecto há muito tempo. Se aquilo que está escrito tem uma ponta de verdade, então eu estou condenado ao inferno até ao fim dos meus dias. Nem que viesse o Santíssimo Papa perdoar-me todos os pecados eu me safaria.

Não tenho grandes informações sobre o que se passa no exterior, mas sei que as pessoas me odeiam. Para elas sou um assassino em série, um psicopata animalesco que devia ter ido parar à cadeira eléctrica.

Não vejo o céu há tanto tempo que não me consigo lembrar da sua cor.

Para o mundo eu sou a personificação do mal. Sou um doente intratável. Sou maléfico por natureza.

O meu aspecto não ajuda muito desde que fui espancado pelo grupo dominante desta jaula de gorilas. Deixaram-me a cara totalmente desfigurada. Levei cento e dezassete pontos e as hemorragias demoraram dias a estancar. Actualmente, se olhares para mim, não saberás distinguir qual dos inchaços da minha cara é o meu nariz.

Até os outros prisioneiros me odeiam. É por isso que estou na solitária há tanto tempo. Os guardas não se importaram muito com aquilo que os outros me faziam até terem de me isolar com medo que me matassem.

Os guardas não gostam que os prisioneiros morram nos seus domínios. Traz-lhes problemas.

Quando entrei na cela em que estou, nunca imaginei que iria passar tanto tempo aqui dentro. Não fui autorizado a assistir ao meu próprio julgamento, porque na audiência preliminar insultei o juiz. Não sei qual foi o problema deles. Ele era realmente um javali nojento... Bem, claro que não devia ter chamado a mãe dele à conversa, mas uma pessoa não controla todos os seus impulsos, não é?

Fui expulso por desrespeito ao tribunal.

O meu processo arrastou-se durante anos e anos. Os meus pais são ricos, ou pelo menos eram, antes disto tudo ter acontecido, e puderam pagar os melhores advogados na minha defesa.

A culpa não foi dos cães dos advogados. Eu condenei-me à morte. A sentença foi ditada há cerca de dois anos, e hoje chegou o grande dia.

Gostava de saber que dia é hoje, já que é provavelmente o dia mais importante da minha vida. Também gostava de saber ao certo qual é a minha idade, que calculo em cerca de vinte e quatro anos.

Quando me olho ao espelho não me reconheço. Transformei-me num destroço esfarrapado da pessoa que uma vez fui.

Não consigo deixar de pensar na minha mãe e na forma como a desiludi. Os meus fantasmas perseguem-me e trucidam-me, recordando-me a todo o momento o amargo destino que tracei para mim próprio.

Os guardas não se importam com nada. São abutres. Uma vez, no balneário, dois gorilas seguraram-me e o chefe do bando corrompeu todo o respeito que eu tinha por mim, num momento que pareceu uma eternidade, em que violou o meu corpo, a minha mente, destruiu a minha dignidade, reduziu-me a esterco consciente da sua existência, humilhou-me tão profundamente que não consegui enfrentar a minha própria imagem durante muito tempo.

Este mundo é podridão. Quando não o conheces, parece um lugar maravilhoso, mas quanto maior se vai tornando a tua consciência sobre os seus limites, maior se torna o teu nojo inerente a tudo o que existe. Ou talvez não. Talvez este mundo seja mesmo o lugar mágico e encantado com o qual sonhei em criança. Talvez tenham sido apenas as minhas acções e decisões que me deram esta percepção da realidade.

De qualquer forma, há muito que a minha percepção deixou de ter qualquer interesse. A minha mente foi tão dilacerada que tudo o que me circunda se tornou completamente surreal.

Tenho consciência disto porque acredito em lógica e num mundo lógico, coisa que o meu deixou de ser por completo.

Um injecção letal, com uma agulha esterilizada. Deram um último cigarro a um homem que ia ser enforcado. Ele respondeu: “Não obrigado. O tabaco faz mal à saúde”.

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