Sobre este blog

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segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Do Outro Lado do Espelho

Bem-vindos ao meu pesadelo. O crepúsculo alonga as sombras até ao infinito, onde os meus sonhos vivem. O ar está tão pesado e tão denso que me sinto encurvar sob o seu peso inexpugnável. A bruma envolve tudo numa atmosfera inefável, etérea, irreal. As árvores morrem, desvanecem-se no negrume, a luz moribunda desfaz-se ao penetrar nas suas copas folhadas, parte-se em mil feixes, fragmenta-se inextrincavelmente como a imagem que vejo quando mergulho nos olhos desse que me encara do outro lado do espelho. Olhos, diz-se, são o espelho da alma. O meu espelho está irremediavelmente partido.

Se o pudesses ver, dirias que caiu ao chão, por acidente, talvez, e que se partiu em mil bocados, que se espalharam pelo chão, fragmentos cintilantes de um todo complexo e nunca completamente compreendido, agora perdido. Dir-se-ia que alguém o tentou salvar, então, recolhendo cada pedacinho, pois a verdade deve ser dita, não há um pedaço que lhe falte, e, com a paciência de quem só lhe resta a morte, se pôs a colá-los, um a um, tentando inverter os insondáveis caminhos da entropia.

Mas a verdade é bem diferente. Ainda que se tenha realmente partido por descuido, tal não ocorreu dessa forma, num momento era uno e todo, noutro um monte de detritos. Não. Tudo começou com uma única racha, perto do bordo, desprezável e desprezível. Uma racha que cresceu e que se ramificou. E quando me apercebi da sua ameaça latente, já era demasiado tarde.

Percebi então que discretamente, silenciosamente, ela o tinha consumido até às entranhas, envenenado a sua essência até ao fulcro. Aquela racha era apenas a parte visível desse universo cacofónico e amorfo que se tinha instalado longe da minha vista, nas profundezas do meu ser. E agora, quando tudo desabava, à medida que os últimos elos que mantinham a coesão se desagregavam, atormentados por tortuosas correntes de caótica destruição, eu via então, enfim, estupidamente impotente, o espelho a fragmentar-se, as rachas a espalharem-se, a ramificarem-se, a rasgarem aquela superfície lúcida, que rangia, num esforço vão, que quebrava, com um tínido agudo e acutilante, que cedia face à pressão insuportável das forças que a corrompiam, lentamente, de uma forma agonizante, como um homem que se afoga, lutando pela sua vida.

E eu apenas podia olhar, enquanto o meu espelho se desfazia. Pensei que as rachas se continuariam a dividir infinitamente, qual fractal, eventualmente reduzindo-o a pó. Mas a sua demanda destruidora acabou por parar, e neste estado ele ficou, frágil, incrivelmente frágil, como que esperando qualquer pretexto, por mais pequeno que fosse, mesmo um sopro talvez, para concluir a sua ruína, para desabar no caos absoluto, finalmente.

Perplexo, fiquei a olhar longamente para as fendas que o rasgavam, que o dilaceravam, desfigurando a sua face límpida e pura, outrora lisa, agora profundamente irregular, cada um dos fragmentos ainda reflectindo o mundo, teimosamente, como se nada tivesse sucedido, como se pensassem que desprezando a inevitabilidade do que acontecera, poderiam diminuí-la ou mesmo apagá-la. Mas a verdade é que já não havia harmonia.

Cada pedaço do espelho apontava numa direcção diferente, reflectia uma parte diferente da realidade, como um exército dispersando atabalhoadamente, após a perda do seu general, cada um para seu lado, sem ordem nem rumo. Só me apercebi, no entanto, da verdadeira dimensão deste facto, quando, deixando de olhar para os pormenores de cada fragmento, me afastei e olhei para a imagem que se formava do lado de lá.

O que vi deixou-me mudo.

A própria realidade partia-se ao entrar no espelho e, para sempre aprisionada nos seus labirintos, consumia-se e corroía-se. E quando fitei o rosto que se escondia para lá da teia quebradiça do vidro polido, apenas pude conter um grito de pavor sufocante, assombrado por uma visão que me viria a atormentar para o resto da eternidade, daquilo que existe dentro de mim, daquilo que apodrece nas vísceras da minha mente.

Uma cara cadavérica, diabolicamente distorcida, profundamente truncada, como se tivesse sido talhada com um cinzel. E bem no fundo das suas órbitas encovadas, um par de olhos cruéis espreitavam, negros e vazios, fitando-me fixamente, tenebrosamente. Quis fugir. Quis correr. Quis fechar os olhos e acreditar que se voltasse a abri-los acordaria e tudo estaria bem outra vez.

Mas não conseguia, estava paralisado, não conseguia mexer-me, não conseguia desviar o olhar daqueles olhos terríveis que me fulminavam, que me penetravam a alma, sondando violentamente as profundezas do meu espírito, queimando tudo na sua passagem. E o som, o som desesperado dos gritos aterrorizados ecoando dentro do meu crânio, como se aquela sonda cortante trouxesse à superfície todas as más recordações que jaziam nos recônditos do meu inconsciente.

Em breve, senti-me desfalecer. O negrume apoderava-se de tudo à minha volta enquanto o meu corpo era arrastado por uma força inexpugnável, em direcção àqueles olhos horripilantes. Quis resistir, quis lutar, mas era impossível, as vozes dentro da minha cabeça não paravam, gritavam cada vez mais e mais alto, num terror indescritível, alucinante. Os olhos do outro lado do espelho pareceram inflar, absorvendo toda a realidade, enquanto eu era arrastado por uma força esmagadora na sua direcção, como se o vácuo daquele olhar me estivesse a puxar para o seu interior, empurrando-me contra o espelho estilhaçado.

Por fim, no limiar da inconsciência o meu corpo cedeu. Como que acelerado pela gravidade esmaguei-me brutalmente contra o vidro que colapsou quase instantaneamente, explodindo em milhares de estrelas de cristal cintilante. Perfurei a superfície e rodopiando lentamente caí no negrume infinito. Antes de perder os sentidos, apercebi-me que tinha entrado noutro mundo, noutra dimensão, noutra realidade. Eu estava do outro lado do espelho. E com uma lucidez incrível, inexplicável, sabia-o, sem saber como: não havia caminho de volta.

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